Guilherme Veiga
Em 2017, quando aconteceu a passeata de Charlottesville, Infiltrado na Klan provavelmente estava finalizando seu processo de pesquisa e escrita ou começando suas filmagens. Talvez Spike Lee não esperasse que sua história, apesar de latente na sociedade contemporânea, se manteria tão atual. Muito além de apenas tocar na ferida do racismo, a obra também assumiu o papel de estancar um sangramento que, em sua esmagadora maioria, continua derramando sangue negro. De acordo com a mensagem que antecede o logo do filme, “essa parada é baseada em merdas reais pra caralho”.
O longa, que no seu aniversário de cinco anos encerrou a Mostra Cinema é Direito do Persona no Sesc Bauru, conta a história de Ron Stallworth (John David Washington), um policial negro da extremamente branca cidade de Colorado Springs. No local, em um momento de ebulição social americana, ele descobre uma célula da Ku Klux Klan ativa na cidade e decide se infiltrar na organização, dividindo sua identidade com o detetive branco ‘Flip’ Zimmerman (Adam Driver). Mas é no teor dessa mesma mensagem que está escondida a intenção de Spike Lee de, na verdade, trazer um meio termo entre fato e ficção para transmitir a ótica do diretor para o público. Tal aspecto transforma Infiltrado na Klan em uma das obras mais conscientes e contundentes da extensa carreira do cineasta.
A obra, ao mesmo tempo que retoma as raízes do idealizador, que levou referências do Cinema blaxploitation para Hollywood com Faça a Coisa Certa (1989), revitaliza o diretor. A ideia é de Jordan Peele, que um ano antes despontava como o novo e excelente nome do Cinema negro, mas que, diante de uma absurda história real, repleta de meandros factíveis com a atualidade, só via um nome capaz de traduzir essa crítica para as telas: Spike Lee.
Stallworth, de fato, existiu, assim como o execrável simpatizante de certos políticos brasileiros, David Duke. ‘Flip’ Zimmerman, detetive parceiro de Ron nas telas, na verdade é Chuck. Não se tem noção se ele realmente era judeu, mas nessa história fazia total sentido atribuir ao personagem cético de Adam Driver à parcela étnico-religiosa que também era odiada pelo grupo.
A história também tem um choque de datas: Ron só se infiltrou na organização seis anos após se tornar policial, em 1978, diferente de Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman, no original), em que toda a narrativa se passa em 1972. Porém, era essencial atribuir um período que tanto a Ku Klux Klan como o Movimento Negro Americano estavam marginalizados, para, assim, traçar um paralelo de origem e suas ressonâncias atualmente. Por tais aspectos, a obra é uma pérola de adaptação, que não a toa rendeu o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, sendo também um respiro de esperança na lamentável edição da premiação em 2019, que premiou o – antirracista até a página dois – Green Book como Melhor Filme.
Parece que a sensação que Infiltrado na Klan quer provocar é aquela de quando rimos de algo questionável e o riso, a princípio de alegria, se transforma em nervosismo. Ele começa flertando com a comédia sarcástica e termina na crítica, justamente para evidenciar que esses formatos de ódio, assim como as fantasias brancas e pontudas, são tão repugnantes que passam por períodos em disfarces. Quando os indivíduos ali sentirem-se seguros, se exibem sem pudor. E com o cineasta tendo mesclado esses dois gêneros durante toda sua filmografia, nesse longa, mais uma vez ele se sente em casa.
A genialidade tanto do diretor como do roteiro, encabeçado por Lee e acompanhado de Kevin Willmott, David Rabinowitz e Charlie Wachtel, são traduzidos em tela através de uma montagem espetacular, guiadas por Barry Alexander Brown. Ela abusa do blaxploitation para dar vida à ideia das mentes criadoras e desenvolver um ritmo delicioso de se acompanhar, intercalando passagens mais calmas com o desenvolvimento dos personagens, de cortes rápidos e cheios de invencionismos como telas divididas ou inserção de pôsteres.
Esses aspectos nos presenteiam com cenas lindas, como a da Associação de Estudantes Negro do Colorado, na qual o discurso sobre a beleza negra é sobreposto com closes da plateia atenta acompanhando. Mas a passagem que resume o primor da montagem é o momento em que Jerome, interpretado por Harry Belafonte (Destacamento Blood) conta a história do Linchamento de Waco, em 1916. Nesse momento, a cena é divida com a Ku Klux Klan se preparando para assistir uma sessão de O Nascimento de uma Nação, filme de 1915 (um ano antes da tragédia) que é uma das bases simbólicas da KKK e do movimento supremacista americano.
Todo o primor do longa por trás das câmeras consegue ser replicado à frente delas. O grande nome que carregava o longa era do próprio Spike Lee, porém o elenco entrou afiadíssimo no projeto. John David Washington (Tenet, Malcolm & Marie), filho de Denzel Washington, emula perfeitamente o deslocamento de uma figura que não é bem-vinda em seus espaços, seja a polícia da época (uma espécie de Klan) ou a Ku Klux Klan. Já Adam Driver, que ganhava relevância com a nova trilogia de Star Wars, faz de Infiltrado na Klan mais um na sua sequência de escolhas acertadas. Ele é um retrato preciso da branquitude que, por muito tempo, escanteou o problema da propagação de ódio por acreditar não ser afetada, e sutilmente demonstra um ódio genuíno por fazer parte daquele grupo e perceber sua negligência.
Do lado da organização nefasta, Topher Grace (That ‘70s Show) impressiona pela semelhança com David Duke, desde sua postura assustadoramente serena e até mesmo pela voz do supremacista ter timbres de Eric Forman. Jasper Pääkkönen (Vikings) e Ryan Eggold (Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre) também são extremamente convincentes e cada um atribui uma persona típica desse tipo de grupo: o primeiro, um lunático imprevisível, enquanto o segundo, uma figura “boa pinta” que pontualmente destila ódio.
Nesse museu de grandes novidades, Infiltrado na Klan constata que, mais uma vez, o futuro está repetindo o passado, sem deixar de explicitar que essa é a América, uma nação arrebatadora que expropria de qualquer minoria para estabelecer seu conceito de supremacia, nos sentidos mais asquerosos da palavra. Por isso Spike Lee, conhecido pelo Cinema crítico, inverte os papéis, e mesmo assim consegue abordar as dores do povo negro. Mas aqui, a queima de cruzes troca lugar com uma reflexão que cauteriza à força uma ferida que insistimos em deixar aberta.
A obra renova os estudos de W. E. B. Du Bois, primeiro negro a se tornar PhD em Harvard. Du Bois, através de seu livro As Almas da Gente Negra (1903), discutiu a dificuldade existencial das minorias, desenvolvendo o conceito de “dupla consciência”, ou a necessidade de entender como tais grupos se enxergam e como o mundo os enxerga; o longa tem êxito ao tratar essa dualidade. Além disso, Infiltrado na Klan é um grito de ‘não’ e ‘basta’: NÃO podemos aceitar essa formas de ódio, e BASTA de racismo. Mais do que isso, o filme é um lembrete de que somente não ser racista, não basta.