Jamily Rigonatto
Em uma sociedade que precifica os seres humanos e os valoriza de forma desigual, vale a pena vender sua própria veracidade por dignidade plastificada? Caso esse não seja o principal questionamento inspirado por Passing – traduzido no Brasil como Identidade – com certeza é um de seus pilares. O longa-metragem lançado em novembro de 2021 na Netflix é um retrato delicado do quanto a sua própria pele pode ser sufocante em uma sociedade estruturada pelo racismo. O filme é a adaptação audiovisual do livro de mesmo nome escrito por Nella Larsen, e é também o trabalho de estreia da atriz Rebecca Hall como diretora.
Ambientada na Nova York de 1929, a produção nos coloca entre a dualidade de Irene Redfield (Tessa Thompson) e Clare Bellew (Ruth Negga), duas amigas de infância que se reencontram de maneira inesperada em uma parte da cidade dominada pela elite branca. O que Irene não esperava é que esse momento nostálgico vem acompanhado de uma mentira: a amiga tem apagado sua própria identidade e ancestralidade enquanto finge ser uma mulher branca.
Por mais aparente que seja a felicidade de Clare por desviar da discriminação e exclusão social, isso tira dela o que realmente a faz feliz, sua cultura. Enquanto frequenta os melhores hotéis, bebe os champagnes mais caros e faz viagens pelo país, ela vive de modo artificial, e encontrar Irene revela um íntimo misto de esperança e tentação. Deslumbrada com a possibilidade de recuperar o tempo perdido longe das comunidades negras, ela passa a se inserir na vida de Irene de forma transgressora.
A personalidade marcante de Clare é perfeitamente moldada por Ruth Negga, que carrega em cada gesto a singularidade da personagem, sua postura e risada sempre extrovertidas revelam o quanto passar tantos anos vivendo como uma pessoa branca deram a ela uma confiança inabalável. Amparada por uma falsa segurança, ela afirma o que há de audacioso em si na circunstância de ser vista como parte de um privilégio em que a opressão nunca sequer foi uma possibilidade. Irene contraria esse comportamento – ainda que, coragem e confiança fossem características fortes dentro dos movimentos negros– quando está em espaços intolerantes, anda com a cabeça baixa e faz gestos suaves e comedidos. Mesmo com a capacidade de se passar como branca, ela transborda um medo que Tessa Thompson sabe traduzir de maneira impecável.
Com a escolha de uma fotografia (responsabilidade de Eduard Grau) em formato quadrado e em preto e branco, a direção de arte nos leva a uma verdadeira viagem no tempo e, em paralelo, concretiza as sensações de tensão e angústia que permeiam a narrativa. Os tons de cinza, preto e branco conferem aos personagens contrastes únicos e bastante simbólicos, as protagonistas aparecem em tons claros, o que reforça a questão da passabilidade e capacidade de camuflagem dentro da sociedade.
A dinâmica da casa da família Redfield no Harlem muda após a chegada de Clare e traz à tona sensações de desconforto em Irene, que aos poucos começa a se incomodar com os sentimentos dos filhos e do marido Brian Redfield (Andre Holland) em relação a amiga. Como a própria Clare diz em um certo ponto do longa, ela faria de tudo para recuperar o que perdeu e isso dá a entender que roubar a vida de Irene para si é uma possibilidade.
Mesmo que o enredo deixe a rivalidade feminina entre elas em foco na história, Identidade acaba desencadeando em suas entrelinhas a interpretação de que a relação delas poderia ser mais que apenas amizade. Os olhares e a inquietação presente nas cenas em que as duas interagem, deixam no ar a possibilidade de uma atração romântica. A hipótese parece ainda mais viável quando em um diálogo com o amigo Hugh (Bill Camp), Irene fala sobre o efeito de curiosidade que Clare causava nas pessoas.
Uma vez que a palavra passabilidade é sobre a capacidade de se encaixar em uma identidade diferente da originária, tanto o título original quanto o traduzido adquirem um significado ideal para a trama e todas as suas possibilidades. Da vida falsa que Clare leva a todas as camadas que Irene esconde, elas se passam, e misturadas ao preto e branco da tela se encontram em seus tons de cinza em comum. A leitura de terceiros e o que enxergam nas personagens não as faz menos pertencentes à racialidade negra, ainda assim, as coloca em uma posição em que partilham de vivências carregadas de incertezas sobre si mesmas.
Quanto ao racismo, este poucas vezes precisa ser dito em palavras para fazer parte do contexto, com comportamentos de personagens secundários e diálogos rápidos a história revela o quanto a segregação racial dos Estados Unidos construiu uma vivencia temerária para a população negra. Os espaços ainda inacessíveis para os afrodescendentes e os bairros habitados exclusivamente por um grupo racial mostram o preconceito como uma parte natural da vida norte-americana. Além disso, brancos dizerem abertamente que odiavam pessoas negras era normalizado, e é algo que o próprio marido de Clare declara.
Apesar da discriminação, Irene se mostra totalmente alheia ao estado político e social alarmante em que vive, talvez por estar em um estado de apatia em que imagina que o máximo que pode acontecer é ser chamada pela n-word. Brian contraria esse comportamento e se mostra muito preocupado com a segurança da família, mas toda vez que tenta contar aos filhos sobre as mortes e torturas, é cortado por Irene e seu ideal de que proteger as crianças é omitir o que acontece.
Outro ponto presente na trama que chama atenção, é a relação da senhora Redfield com a empregada de sua casa. Quase todas as interações entre elas são ordens em cenas que sempre vêm acompanhadas de um serviço doméstico. O foco da filmagem nesses momentos, inconscientemente nos leva a questionar sobre a desigualdade existente dentro das minorias sociais. Zu (Ashley Ware Jenkins) é uma mulher retinta que está em um lugar de menos oportunidades em relação à pessoas negras de pele clara, essa perspectiva evidencia a disparidade inserida nos grupos minoritários e a habitualidade que coloca pessoas mais distantes das camadas dominantes proporcionalmente distantes da ascensão e aceitação social.
Ao contrário do que era esperado, Identidade foi esnobado pelo Oscar 2022: a expectativa era a de que Tessa e Ruth recebessem indicações de Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante. Entretanto, a presença do filme não foi esquecida por outras premiações. No Gotham Awards de 2021, recebeu cinco nomeações, assim como apareceu na lista de vencedores do Black Film Critics Circle Awards do mesmo ano. No BAFTA Awards e no SAG (Sindicato dos Atores), Negga foi lembrada, assim como no Globo de Ouro. Passing também apareceu nas listas do Film Independent Spirit Awards, premiação independente mais importante dos EUA, e Negga venceu o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante. Rebecca Hall ainda apareceu na prestigiosa lista do Sindicato dos Diretores, na categoria de Estreante.
Identidade abandona a ideia de uma narrativa impetuosa e direta e escolhe retratar a temática racial com suavidade, constituindo uma atmosfera que carrega muito de si dentro das entrelinhas e permite uma pluralidade de percepções admirável. Ao ser desenvolvida um momento temporal que ao mesmo tempo nos parece tão distante e – infelizmente – tão próximo, a produção abraça uma reflexão sobre privilégios, colorismo e pertencimento.
Assim, a obra cumpre seu propósito de uma maneira muito bem aplicada enquanto passa longe de reconfortante, aliás, é aflita. A ausência de uma abordagem enérgica faz com que, como na vida, não consigamos julgar as atitudes dos personagens de forma extrema ou bem definida, afinal, cada um tem suas razões e não há como simplesmente escancarar o que é certo ou não. Ao fim, entre sobreviver pela metade ou viver inteiro e acompanhado pelo medo, em Identidade, nenhuma das opções parece contemplar o mínimo de justiça.