Ana Júlia Trevisan
Deborah Vance é uma comediante de quase 70 anos, pioneira do gênero no stand-up e com shows intocáveis em um grande cassino nas noites de Las Vegas. Suas piadas beiram a autodepreciação, escancarando o machismo e a misoginia por trás da comédia. Ava Daniels é uma jovem, roteirista, recém-cancelada e desempregada. Os sonhos de Ava em Los Angeles vão por água abaixo após um tweet de teor homofóbico envolvendo o filho de um senador. Já Deborah tem seu show fixo em um cassino de Las Vegas finalizado, contra sua vontade, após 2500 apresentações.
Útil? Sim. Agradável? Nem tanto. É o empresário em comum, Jimmy (Paul W. Downs), que tem a mirabolante ideia de unir forças díspares e opostas para o mesmo trabalho. A relação, que aos poucos, conforme as tramas paralelas vão se construindo, se transforma na dinâmica chave de Hacks, é codependente. Deborah e Ava dependem uma da outra na mesma intensidade que odeiam o trabalho em conjunto.
No início, o santo das duas não bate. Ava enxerga em Vance uma mulher presa no tempo e em sua própria zona de conforto, maquiavélica e soberba. Já a veterana, vê em Ava apenas uma jovenzinha millennial que não a entende, e não fez o mínimo de pesquisar sobre seu trabalho. É esse embate geracional que molda a série. Diferente de qualquer produção caricata que espreme até a última gota as diferenças de idade, Hacks a converte em apenas uma de suas cartas de sustentação. O conflito de gerações entre as personagens permite que discussões importantes sejam levantadas, possibilitando identificar o que avançou no decorrer dos anos.
Trazendo o passado de Deborah em doses homeopáticas, Hacks começa a engatar. A história da comediante é contada ao passo que, humilhada, Ava digitaliza suas piadas. Sim, a cancelada foi tratada igual estagiária. Impaciente e diva dos shows, Deborah está no controle de tudo e todos, principalmente de Marcus, seu agente e fiel escudeiro interpretado por Carl Clemons-Hopkins, que na vida real se identifica como não binário.
Quem dá vida a essas mulheres são Jean Smart e Hannah Einbinder. Smart é colocada no protagonismo irrefutável que sempre mereceu, ela defende sua glamurosa Deborah Vance com unhas e dentes, transpassando verdade em cada linha da personagem. Já Einbinder é uma agradável surpresa. Estreante na comédia, a atriz mostra que nasceu pronta e, sua dedicação a Ava endossa as inseguranças da jovem como uma espécie de autossabotagem que se categoriza durante os dez episódios de Hacks.
Não é a toa que ambas receberam indicações ao Emmy: Einbinder como Melhor Atriz Coadjuvante em Série de Comédia e Smart como Melhor Atriz – além da nomeação em como Atriz Coadjuvante em Série Limitada por seu papel em Mare of Easttown – o brilhantismo da veterana a tornou favorita dentro da categoria (posição que antes da estreia era de Kaley Cuoco, protagonista da outra série do HBO Max), garantindo que a estatueta irá fazer parte da decoração de sua casa.
Hacks é uma série de comédia dentro de uma série de comédia, e ao lado de um roteiro completo, se cruza a realidade. Basta fazer uma lista mental dos humoristas que conhecemos, não precisa ir longe, e pensar nos comediantes brasileiros: Marcelo Adnet, Fábio Porchat, Gregório Duvivier, Tatá Werneck, Renato Aragão, Fernanda Torres. A pergunta que fica é: por que pensamos em tão poucos nomes femininos? Por que muitos acham que há algo de impróprio em uma mulher que faz as mesmas piadas que um homem?
Na Emmy Tape de Jean Smart, as críticas explodem. O fato é que as mulheres nunca tiveram a mesma oportunidade de fazer comédia, sempre sendo assediadas na vida e nos palcos. Em anos de carreira, sempre houve um homem no caminho de Deborah Vance, contando “piadas” sobre seus seios, roubando sua cena e a diminuindo a mero material de sexualização. O que homens como Drew (Adam Ray) precisam para parar de se acharem superiores apenas por terem um pênis? 69 milhões, ou melhor, 1.69 milhões. Esse é o valor que Deborah está disposta a pagar para que o “humorista” nunca mais pise num clube de comédia. Sim, dinheiro, pois notas de papel estão acima do caráter de muitos e essa bolada a coloca num pedestal ainda maior do que já estava.
Hacks acerta em cheio ao retratar como, até hoje, o tratamento das mulheres na indústria da comédia, ou na indústria audiovisual em geral, ainda não é justo. Mesmo com toda luta que existe atualmente para gritar que o machismo acaba com as oportunidades femininas, às vezes o sentimento é de estar dando murro em ponta de faca e andando de olhos fechados em um campo minado, onde qualquer passo em falso pode fazer com que seu legado vire pó em questão de segundos se você for mulher.
Deborah é intimidadora, soberana, dona de si e de seu redor. Mas, por trás desse caráter vilanesco de uma lenda viva, existem os traumas do passado que nunca foram encarados. Deborah Vance poderia ter sido a primeira mulher a apresentar um talk show noturno em uma rede de TV, mas pra ela sobrou apenas uma traição e a fama de ter botado fogo na casa do ex-marido. A plenitude da zona de conforto que a veterana bate na tecla em viver se justifica na provocação de Hacks. Pra ser mulher e sobreviver nos palcos de Hollywood é melhor conspirar contra si própria.
A verdade é que o ambiente hollywoodiano só aceitou as mulheres para que homens pudessem fazer piadas de tons sexuais com elas. A comédia é um ambiente excludente a elas, dotado de misoginia e machismo. E a discussão sobre como as mulheres são assediadas em clubes de comédia, similar ao que ainda acontece em sets de gravação, é o que torna Hacks tão relevante ao longo de seus capítulos de meia hora.
A série criada pelo casal Lucia Aniello e Paul W. Downs em parceria com Jen Statsky termina seu primeiro ano com maestria, conduzindo o gancho perfeito para sua próxima temporada, mas sem deixar pontas soltas que a prendam no enredo de sua estreia. Sem episódios medianos, muito menos ruins, a série usa de sacadas já conhecidas da comédia como um episódio de jantar desconfortável mas, claro, com a assinatura Hacks de deliciosamente constrangedores. O brilho de Jean Smart vai além dos paetês usados pela comediante, a atriz é uma força da natureza, tão indestrutível quanto sua protagonista. Quebre a perna e volte sempre, Deborah Vance.