Eduardo Rota Hilário
“Vou carregar de tudo vida afora/Marcas de amor, de luto e espora/Deixo alegria e dor/Ao ir embora”. Os versos de Compasso, composição de Angela Ro Ro com Ricardo Mac Cord, podem até não aparecer na trilha sonora da produção dinamarquesa Flee (Flugt, 2021), dirigida por Jonas Poher Rasmussen; no entanto, ao serem recortados do restante da música, esses fragmentos poéticos expressam muito bem uma das inúmeras sensações que permeiam o longa-metragem estrangeiro. Afinal, em todo o filme, estamos diante de uma concretude nua e crua, e ela nunca será vivenciada da mesma forma por indivíduos minimamente diferentes.
Antes de qualquer coisa, não é de se espantar que uma possível tradução para flee seja fuga. Documentário elaborado em grande parte como animação, a obra de Rasmussen narra uma vida de deslocamentos constantes. Nascido no Afeganistão, o protagonista Amin precisa escapar, logo cedo, de um cenário de guerra que vai tomando conta de sua terra natal. Realocado com a mãe e irmãos na Rússia pós-comunismo, o jovem precisa tolerar com frequência a corrupção da polícia local para com os refugiados. Como a vida torna-se inviável, a família passa a enfrentar os dilemas do tráfico humano, meio pelo qual chegará a novas nações.
Sem muitas surpresas, o destino não planejado de Amin é a Dinamarca, local onde conhecerá Rasmussen. Acontece que essa história foi, por muito tempo, um segredo até mesmo para Kasper, futuro marido do protagonista. Nesse contexto, narrar uma trajetória de vida pela primeira vez, por meio de um documentário, tendo ainda receio de expor situações tão delicadas, que colocam em xeque algumas noções de legalidade, não poderia ser algo inferior à necessidade. Justamente em proteção aos agentes desta narrativa, Rasmussen age com brilhantismo ao cobri-los com pseudônimos – como é o caso do próprio “Amin” -, explorando também a liberdade criativa das animações para disfarçar os traços desses indivíduos.
Mas a animação, aqui, não é somente uma camuflagem. Trata-se, ao mesmo tempo, de um recurso artístico por meio do qual é possível reviver o passado. Recurso esse que, com traços menos intensos, indica memórias mais vagas e confusas, enquanto os acontecimentos nítidos aparecem com detalhes precisos e diversidade de cores. É, enfim, um flerte com as ferramentas da ficção, embora isso não seja, de forma alguma, uma manipulação total ou uma atenuação dos episódios experienciados por Amin – que são dramatizados com equilíbrio ao longo do filme.
Partindo dessa percepção, podemos entender que a fragilidade é um dos pontos centrais de Flee. “Algumas coisas são difíceis de falar. Ainda é difícil, mas preciso superá-las. É o meu passado, não posso fugir dele, e não quero. Eu posso conseguir em meio ano, um ano.”, confessa Amin nos primeiros minutos do longa. Não restam dúvidas de que, na tentativa de ser o mais fiel possível à realidade, o protagonista de uma vivência repleta de prováveis traumas assume uma fragilidade necessária para não se machucar em demasia – uma fragilidade, aliás, essencialmente humana, nítida não só na fala destacada, mas também no filme como um todo.
É, entretanto, na contraposição ‘ser versus não ser’ que se aloja um dos maiores auges do documentário. Afastando-se das recorrentes dicotomias, Rasmussen expõe as tonalidades que afetam a identidade de Amin. Já nos minutos finais do longa, esse amigo-narrador faz uma confissão: “começo a ficar cansado de estar constantemente em movimento.” Ultrapassando os deslocamentos concretos mais recentes, o que está em jogo neste momento são os dilemas que sempre marcaram a vida do protagonista. As constantes mudanças de países, a vida enquanto refugiado, a orientação sexual reprimida, dentre inúmeros outros elementos, ou compõem – sem limitar -, ou colocam em crise uma existência humana inteira, o que faz jus à complexidade inerente a qualquer sujeito não fictício.
Com escolhas tão sensíveis, Flee curiosamente tensiona a todo momento a humanidade dos espectadores, colocando em evidência significativa, mas não exagerada, questões extremamente humanas ou desumanas. A negação da homossexualidade, por exemplo, em um país onde “os homossexuais não existiam” – isto é, eram reprimidos ao ponto de não receberem sequer uma designação – pode causar muita agonia em um primeiro momento. Por outro lado, quando alguns irmãos de Amin descobrem e aceitam essa faceta de sua realidade, incentivando uma espécie de ‘libertação’ via boate gay, certos sinais de esperança logo trazem um sorriso para os rostos outrora tensos do público.
Mas nem sempre há alívio para as questões apresentadas. Quando os detalhes do tráfico humano dominam a narrativa, o nó na garganta do espectador mais sensível pode, com certeza, marcar sua presença, tendo em vista que, em décadas, pouca coisa mudou. A guerra e seus dilemas, então, dialogam intensamente com os conflitos da atualidade. Ver vários jovens fugindo de uma obrigação desumana, ou seja, de uma luta armada, é um diálogo direto entre o filme e os noticiários de hoje em dia, o que gera uma aflição capaz de tangenciar ao mesmo tempo a impotência e a comoção.
Provavelmente, o que mais assusta em Flee é saber que o filme resgata uma história real – e que algumas décadas foram, com razão, incapazes de apagar o medo de quem um dia já viveu sem liberdades e dignidade. Ainda assim, é essencial ter esse dado em mente para que se obtenha uma experiência completa de humanização dos fatos históricos. Em aspectos técnicos, o filme abre espaços na animação predominante para inserir registros reais do passado mais distante ou dos anos mais recentes. Com sucesso, isso facilita o exercício da memória, lembrando constantemente que, antes de ser um conjunto de ilustrações, Flee é um documentário.
No final das contas, a obra de Rasmussen tem a duração perfeita para os recortes de vida que pretende narrar, não pecando por falta de informação ou adornos sem sentido. Alcançando um feito histórico no Oscar 2022, Flee já é memorável por ser o primeiro filme a concorrer simultaneamente a Melhor Animação, Melhor Documentário e Melhor Filme Internacional. Portanto, mesmo que não receba uma estatueta em março, a produção dinamarquesa dá continuidade à sua jornada de respeito, que já foi vitoriosa em eventos como o Festival de Sundance, o Festival de Annecy e os Prêmios do Cinema Europeu. E quanto a Amin? Que receba, hoje e sempre, toda a dignidade do mundo.