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Ana Júlia Trevisan
Séries de comédia são sempre um banquete da Televisão. Ora de aspectos feel good nos fazendo pertencer a uma família ou torcer fervorosamente para um time do futebol inglês, ora encarando o humor ácido da vida política, o gênero sempre nos permite pensar com mais leveza sobre as aleatoriedades da vida. Com espaço de sobra para inovar, a britânica Phoebe Waller-Bridge desafia o gênero com Fleabag. A dramédia, que estreou sua primeira temporada em 2016, não tem tabus para falar de solidão, saúde mental, relacionamentos, e claro, sexo. A produção ainda recebe um diferencial tornando a série tão única: todos esses aspectos são representados sob o feroz olhar e consciência feminina.
Phoebe Waller-Bridge é uma atriz e escritora que usa a comédia para espalhar suas críticas sociais e políticas. Dentre incontáveis trabalhos, ela é a showrunner responsável pelo glorioso primeiro ano de Killing Eve. Mas foi a cirúrgica e destemida Fleabag, produzida pela BBC Three com coprodução do Amazon Prime Video, que arrebatou o olhar do público para o unânime e incontestável trabalho de Waller-Bridge, reconhecido com o Emmy de Melhor Série de Comédia em 2019, com a segunda temporada da série. Além dela, a produção saiu vitoriosa em mais três categorias, e foi consagrada a grande vencedora do Globo de Ouro 2019.
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Pintada como uma série sobre uma mulher viciada em sexo, Fleabag está longe de ser meramente sobre isso. Aliás, nem realmente viciada em sexo nossa protagonista – que nunca é nomeada, adotando assim o próprio nome da série – é. Em pouco mais de vinte minutos, a produção provoca um tsunami de sentimentos. Do riso ao choro, da vergonha alheia à empatia, nada passa ileso no roteiro absorto e potente de Waller-Bridge. O sexo é sim uma das engrenagens principais da narrativa, assim como a quebra da quarta parede provoca o diferencial da produção. No entanto, o espanto pela liberdade sexual feminina vem da falta de produções que tratam da temática. As reais peças chaves de Fleabag são as relações interpessoais da protagonista e sua solidão.
O humor da série segue o padrão britânico: rápido e sem limites. A aura excêntrica e um tanto bagunçada da personagem principal faz com que a dinâmica de Fleabag evolua ao passar dos episódios. Uma seriedade maior é aplicada ao enredo conforme o luto e a culpa vão ganhando mais camadas e as relações se tornam mais complexas. Entretanto, o sarcasmo se mantém por todos os episódios, fazendo com que Fleabag permaneça no patamar elevado em que foi colocada. As piadas ordinárias podem soar rude aos menos acostumados, mas é essa posição de público-confidente que gera o cativo pela trama, construindo seu tom pessoal que faz o telespectador gargalhar pelo inadequado.
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Somos colocados numa posição onde descobrimos as prestações do passado da protagonista. Logo notamos que ela está sendo engolida pelo luto e não demora muito para entendermos que ela carrega a dor da perda da mãe e, mais recentemente, a partida da amiga. É essa dinâmica que torna a maratona de Fleabag tão prazerosa. O espectador é confidente, e não obstante, cúmplice do roteiro.
Estamos exercendo o papel de quase irmãos siameses da protagonista. É para quem está do outro lado da tela que ela olha, fazendo caras e bocas, e é ela que as câmeras perseguem a cada cena. Estamos tão grudados que conhecemos os personagens apenas pela maneira na qual Fleabag trata eles: o Pai (Bill Paterson), o Cunhado (Brett Gelman), a Madrinha (Olivia Colman). Isso se dá pois o que realmente importa na narrativa é a maneira em que eles se relacionam com a protagonista. As poucas a terem nome são Claire (Sian Clifford) e Boo (Jenny Rainsford), irmã e falecida melhor amiga, respectivamente.
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A construção da relação entre as irmãs reforça que a série trata pessoas com a saúde mental deteriorada. É na tentativa de aproximação das duas que notamos que são os vários problemas daquela irmã poderosa e controladora que a impede de se entregar verdadeiramente a momentos felizes. Isso se junta ao fato de que Fleabag está emocionalmente esgotada com seu luto e seu café – a ocupação a qual ela dedica sua vida – falido, somado a vida que vai acontecendo, os problemas de outras pessoas vão surgindo e ela vai ultrapassando os limites emocionais dela. Em cima disso, a sagaz Waller-Bridge consegue falar sobre relacionamentos abusivos e como qualquer um está sujeito a entrar no ciclo vicioso que te destrói aos poucos.
Dando um alívio na ambientação da temporada, em um dos pontos altos do primeiro ano da série, Fleabag e Claire vão a um retiro de mulheres. A perspicácia do tema central do episódio é uma sátira à forma na qual homens e mulheres são ensinados a lidar com os próprios sentimentos. As mulheres são mostradas sendo obrigadas a reprimir suas emoções caladas e limpando o chão, enquanto os homens são incentivados a extravasar a infelicidade por meio de gritos.
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A série explora as diversas facetas do ser humano, tanto dentro como fora das telas, instigando o telespectador a refletir sobre a sociedade e os padrões de comportamento. Aqui, ninguém é ruim ao ponto de merecer um arco de redenção. Os perdões não são programados, muito menos forçados, e os personagens não se resumem em atitudes isoladas. Tudo é construído em um script bem estruturado, que não omite sua melancólica tristeza, disfarçando-as no humor autodepreciativo.
Foi nos palcos do teatro que Fleabag ganhou vida pela primeira vez. Enquanto estava em exibição, a amiga de Phoebe e premiada atriz Olivia Colman prestigiou o espetáculo. Encantada pelo inigualável monólogo, falou à atriz que faria qualquer coisa que ela escrevesse. Dito e feito. Olivia ganhou a responsabilidade de dar vida e forma à Madrasta. A personagem que é uma das mais odiáveis da série recebe chuva de elogios pela atuação – sempre – impecável de Colman.
A Madrasta é a personagem perfeita para servir de termômetro aos atos da família. É no ambiente à la almoço de domingo que as cenas mais intimistas acontecem. Os diálogos passivos-agressivos, o desconforto, as cutucadas, tudo se desenvolve em ritmo crescente até chegar ao desentendimento que pauta o episódio. A personagem de Olivia parece ser uma das únicas a poder ser duramente julgada. As escolhas feitas pelos personagens durante a série refletem os traumas conjuntos e particulares que cada um carrega.
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Fleabag vem para mostrar como somos patéticos. É tudo inteligente, estranho e desconfortável. E todo o desconforto causado nos seis episódios iniciais é carimbo de excelência no roteiro, que passa do agradável ao trágico em segundos. No capítulo final do primeiro ano, quando as peças que faltavam no quebra-cabeças aparecem, Fleabag atinge o ápice de tudo que propôs durante a temporada.
Em outra narrativa, o público transformaria a protagonista em Geni e a apedrejaria em praça pública. Mas como esta série é bem escrita e bem interligada, tudo é diferente. Quem assiste cria empatia pela protagonista e entende suas dores. Não é jogo de mocinho ou vilão. A vida não é tão simples assim. De maneira brilhante, Phoebe Waller-Bridge mostra que compreender os erros do passado não deixa ninguém imune aos erros do futuro.
Tudo é muito bem escrito, atuado e dirigido. Há cinco anos, Fleabag revolucionou o intimismo de se fazer TV. Sua proximidade que transcende as câmeras, e consegue envolver e imergir em apenas 20 minutos, é algo que acontece apenas a cada passagem do Cometa Halley, como foi Curtindo a Vida Adoidado nos anos 80 e como, muito provavelmente, demoraremos para ver o fenômeno se repetir. Fleabag é coisa de gênia.