“Contamos histórias a nós mesmos a fim de viver.”
– Joan Didion
Pois é, 2021 chegou ao fim. Depois de 12 meses envolto em cada movimento do universo cultural, o Persona inicia as despedidas do ano ao pé de sua Estante e conclui a terceira edição de seu Clube do Livro. Este que, no mês de dezembro, teve a oportunidade de conhecer a Literatura de uma das autoras mais relevantes da atualidade, e de admirar o legado deixado por duas das mais importantes escritoras dos últimos tempos. É que em meio à leitura coletiva de A filha perdida e ao mistério aclamado que existe ao redor do nome best-seller de Elena Ferrante, o Persona se juntou ao resto do mundo para a despedida de bell hooks e Joan Didion.
No dia 15, eternizamos bell hooks como a artista, professora, teórica, pesquisadora e escritora, que dedicou mais de 50 anos de sua vida a estudos e políticas interseccionais sobre educação, gênero, raça, classe e economia. Referência do feminismo negro, ativista antirracista e estudiosa do amor, o pseudônimo de Gloria Jean Watkins nasceu no interior de um Estados Unidos segregacionista e morreu num planeta que ainda tem muito o que superar, mas que, através de sua existência, tem muito mais conhecimento sobre como fará suas revoluções.
Já no dia 23, o mesmo era lembrado sobre Joan Didion, quando reconhecemos a necessidade de compreender o mundo em que vivemos e os humanos que o habitam. Ao usar seu olhar e suas palavras para registrar e interpretar as transformações culturais e políticas da sociedade norte-americana na segunda metade do século XX, a californiana construiu uma carreira de mais de 60 anos, que entre muitos ensaios, alguns romances e outros roteiros, transformou o Jornalismo e a Literatura para todo o sempre.
Assim, o contexto literário de dezembro se tornou grandioso, mas Elena Ferrante deu conta de o acompanhar. No embalo do lançamento da adaptação cinematográfica – já muito celebrada pela direção da estreante Maggie Gyllenhaal, que chegou à Netflix no último dia do mês -, o Clube do Livro do Persona decidiu mergulhar nas praias do sul da Itália junto de Leda (vivida no Cinema por Olivia Colman) e nos dramas profundos de A filha perdida.
Para o último mês de 2021, reverenciamos o trabalho de mulheres que tanto fizeram pelo nosso passado, presente e futuro, e introduzimos a edição de dezembro do Estante do Persona. Entre as indicações literárias da nossa Editoria e o comentário sobre a leitura do mês, vibra a honestidade visceral de uma história cuja autora tem coragem de dizer o que nós não temos – em perfeita harmonia com o poder revolucionário das vozes que vieram antes dela.
“O coração da justiça é dizer a verdade, vermos a nós mesmos e ao mundo como somos, em vez de como gostaríamos que fôssemos.”
– bell hooks
Livro do Mês
Elena Ferrante – A filha perdida (174 páginas, Intrínseca)
Se há um nome a ser perseguido na Literatura contemporânea, este é o de Elena Ferrante. A assinatura da escritora italiana vendeu mais de 30 milhões de exemplares pelo mundo nos últimos 10 anos, sucesso atribuído, principalmente, à sua saga conhecida como Tetralogia Napolitana e ao mistério que cerca a identidade por trás de seu pseudônimo. Sua história mais vendida é a série de 4 livros iniciada com A Amiga Genial, que narra uma longa amizade entre duas garotas nascidas em Nápoles na década de 40. O clamor da crítica, no entanto, é direcionado aos seus romances singulares, que sempre investigam camadas profundas de personagens femininas visceralmente verdadeiras.
É este caminho que nos leva até A filha perdida. O quarto romance de Ferrante, lançado na Itália em 2006, traduzido para o inglês em 2008 e publicado no Brasil em 2016, reflete sobre dilemas profundos da maternidade a partir de uma protagonista agridoce. Ela é Leda, uma professora universitária de meia idade que está de férias no litoral sul da Itália. Lá, distante da vida cotidiana e próxima de memórias de infância, ela conhece Nina, a jovem mãe de Elena e parte meio deslocada de uma barulhenta família napolitana. O encontro das desconhecidas logo engata um processo de reflexão íntima em Leda, gerando uma onda de pensamentos que vão desde sua relação com a sua mãe, até os laços que mantém com as suas filhas.
O maior traço da história é justamente a honestidade de Elena Ferrante ao tratar dos dramas de suas personagens. Sem se preocupar com qualquer juízo de valor ou corresponder ideais que aprisionam mães e mulheres nos polidos padrões patriarcais, as palavras da autora, traduzidas para o português brasileiro por Marcellino Lino, são completamente livres para criar o panorama psicológico de A filha perdida. Desta forma, o impacto da narrativa é generalizado e muito bem arquitetado, como uma grande digressão investigativa e sentimental que não perde o fio nem em seus momentos mais subjetivos. Para isso, ela nos alerta desde o primeiro capítulo do livro: “As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender.”
Dicas do Mês
Daniela Arbex – Todo dia a mesma noite (248 páginas, Intrínseca)
Ao ligar a TV naquele 27 de janeiro de 2013, ninguém imaginava que a dor daquele dia ficaria marcada para sempre na alma dos brasileiros. Isso porque, entre às 2h e 2h30, um incêndio na Boate Kiss, em Santa Catarina (RS), vitimou 242 pessoas e feriu outras 636. Em 2018, Daniela Arbex (a mesma autora de Holocausto Brasileiro e Cova 312) concluiu a missão de verbalizar toda a angustia e sofrimento que as famílias ainda passam sobre a infindável tragédia. O resultado é o livro-reportagem Todo dia mesma noite.
Entrevistando familiares e profissionais que trabalharam no resgate das vítimas, Daniela se coloca ao lado das pessoas envolvidas e mostra seu respeito escrevendo o livro em terceira pessoa. Cada capítulo de Todo dia é a mesma noite é doloroso: “Apesar do preparo emocional para esse tipo de trabalho, o incêndio na Kiss fugia a qualquer parâmetro.” O cenário era de guerra e os detalhes precisamente escritos por Daniela Arbex não deixam o sentimento de luto passar ileso. – Ana Júlia Trevisan
Emily M. Danforth – O Mau Exemplo De Cameron Post (448 páginas, HarperCollins Brasil)
“Quando os pais de Cameron Post morrem em um acidente de carro, a primeira coisa que ela sente, para sua própria surpresa, é alívio. Alívio que eles nunca vão precisar saber que, algumas horas antes, ela estava beijando uma menina”. Como a sinopse de O Mau Exemplo de Cameron Post já adianta, o alívio não dura muito tempo. No primeiro livro de Emily M. Danforth, que ganhou uma adaptação cinematográfica estrelada por Chloë Grace Moretz, Cameron Post é uma adolescente descobrindo e explorando sua sexualidade. Depois de ser flagrada aos beijos com uma menina pela tia religiosa e conservadora com quem mora desde a morte dos pais, Cameron é enviada para o acampamento Promessa de Deus para ser curada de suas “tendências homossexuais”.
Narrado pela Cameron Post em primeira pessoa, O Mau Exemplo de Cameron Post embarca no presente e no passado de sua protagonista: a culpa e a angústia dela – e de outros adolescentes do acampamento, que passam pelo mesmo abominável processo de “cura” – se fazem sentir quando os experienciamos juntos da própria. Ela vai do desalento ao cinismo de fingir que se tornou “ex-gay” até a esperança de que talvez, se tentar o suficiente, ela realmente consiga mudar sua sexualidade e finalmente sair de lá. Na pele de Cameron Post, o livro é doloroso ao abordar os abusos psicológicos, emocionais e, por vezes, físicos da terapia de conversão, que era comum nos Estados Unidos dos anos 80, quando a história se passa.
Como um bom coming-of-age, porém, O Mau Exemplo de Cameron Post alivia as dores do agora lembrando do que já passou, e mescla a estadia no Promessa de Deus com a nostalgia das memórias da infância e da adolescência de Cameron, dela crescendo e descobrindo mais de si mesma. E no lugar onde a esperança da protagonista morre, é também onde ela encontra, finalmente, seu lugar: junto de Adam e Jane, amigos que conheceu e de quem se aproximou no acampamento, O Mau Exemplo de Cameron Post – e Cameron Post – se abrem para o futuro, com um final em aberto otimista e cheio de possibilidades. – Vitória Lopes Gomez
Adam Silvera – Os Dois Morrem no Final (416 páginas, Intrínseca)
Fazendo uso de um delicioso artifício de realismo mágico, o nova-iorquino Adam Silvera encanta em Os Dois Morrem no Final, lançamento LGBTQIA+ de 2017 que só chegou ao Brasil no ano passado, sob tradução de Vitor Martins. Na trama, o mundo divide espaço com a Central da Morte, uma espécie de call center que, assim que o relógio bate meia-noite, liga para as pessoas que vão morrer naquele dia e avisam do futuro ceifado.
Nesse ambiente, conhecemos dois garotos, Rufus e Mateo, adolescentes com personalidades opostas, mas complementares, que se conhecem no último dia da vida de cada um. A história, que se espreguiça pela duração dessas derradeiras vinte e quatro horas, vai mostrando pequenas missões e desejos cumpridos dos agora amigos. Misturando aventura, romance e um bocado de drama, They Both Die at the End, infelizmente, não mente no título. É recomendado comprar uma caixinha de lenços de papel na hora de devorar esse sucesso literário. – Vitor Evangelista
Drauzio Varella – Estação Carandiru (368 páginas, Companhia das Letras)
Lançado em 1999, Estação Carandiru é considerado um dos maiores fenômenos editoriais brasileiros. Nessa espécie de livro-reportagem, Drauzio Varella conta sua experiência como médico voluntário no Carandiru (então maior presídio da América Latina), de 1989 – quando chegou com um projeto de prevenção à AIDS – até seu respectivo fechamento, em 2002. A obra é composta pelas diversas histórias dos presidiários, contadas a Drauzio Varella, nas quais são relatadas as dificuldades e motivos que os levaram ao cárcere. Essas histórias também se misturam com a própria visão e trajetória do narrador, que tenta colocar uma perspectiva humana sobre os problemas sociais expostos dentro da cadeia, sem os típicos paradoxos e preconceitos envolvidos no tema, prevalecendo sua visão de médico, na qual há um diagnóstico sem o tom de denúncia.
Na obra, enxergamos o presídio como um microcosmo da sociedade brasileira, deixando em evidência problemas de saúde pública, as desigualdades e a violência social. Percebe-se na leitura que, no Carandiru, todos seguem um código penal não escrito, inclusive os carcereiros, de forma a preencher o vácuo de poder que dificilmente permanece vazio. Há uma ordem mais ou menos cronológica das histórias, e seus capítulos finais relatam o Massacre do Carandiru, ocorrido em 1992, onde 111 presos foram assassinados pela Polícia Militar no Pavilhão 9 da cadeia – local onde ficavam, majoritariamente, os presos de primeira viagem. Drauzio dá o início, chamado de “O Levante”, o desenrolar da confusão e o seu fim trágico, angariando depoimentos dos presos que conseguiram sobreviver. O livro recebeu o Prêmio Jabuti em 2000, na categoria Livro do Ano, e foi adaptado para o cinema em 2003, no filme Carandiru, dirigido por Héctor Babenco. – Bruno Andrade
Ferenc Molnár – Os meninos da rua Paulo (264 páginas, Cosac Naify)
Escrita pelo húngaro Ferenc Molnár, e publicada, pela primeira vez, em 1907, Os meninos da rua Paulo é uma das histórias mais adultas sobre a infância. Ambientado no ano de 1889, na cidade de Budapeste, a narrativa trata sobre a rivalidade entre dois grupos de meninos: os da Sociedade do Betume contra os camisas-vermelhas. Ambos disputam pelo poder de um terreno baldio da rua que dá nome ao livro, considerado um espaço sagrado para suas brincadeiras.
Com tradução de Paulo Rónai, a obra já foi literatura obrigatória em diversas escolas do Brasil (inclusive na que eu estudei). O que poderia ser uma história facilmente abordada em tirinhas da Turma da Mônica, acaba por trazer uma perspectiva interessante sobre a transição da infância para a vida adulta, além de falar sobre a falta de espaço para os jovens na sociedade e a violência psicológica que esses meninos eram submetidos no contexto histórico da Hungria da época. Não à toa, Os meninos da rua Paulo se tornou um dos livros húngaros mais conhecidos ao redor do mundo, ganhou diversas adaptações para o Cinema e conversa com produções mais recentes, como o filme A Cidade das Crianças. Apesar da dificuldade em lembrar dos complicados nomes dos personagens, até hoje não me esqueço da profunda história do pequeno Nemecsek. – Vitória Silva