Caroline Campos
Não tem como negar que Lin-Manuel Miranda é um fenômeno. Desde que surgiu no mundo da Broadway nos anos 2000, o artista multifacetado de origem porto-riquenha já acumula um Pulitzer, três Grammys, um Emmy, três Tonys e não demorou muito para cair nas graças de Hollywood. Depois de Moana, Mary Poppins, a gravação de Hamilton pelo Disney+ e até uma participação em Brooklyn 99, chegou a vez de Miranda retornar às origens e levar às grandes telas aquele que foi seu primeiro musical. No entanto, é com o protagonismo de Anthony Ramos que Em um Bairro de Nova York chega ao HBO Max e aos cinemas do mundo todo cercado de polêmicas e críticas controversas a respeito da trama.
Apesar do arrebatador material-base que o diretor Jon M. Chu tinha em mãos, o longa, que acompanha três dias da rotina de Washington Heights, não atende às próprias expectativas. Toda vez que um grande musical surge na lista de lançamentos, ele carrega com si um tipo especial de burburinho – e com a promessa latina do ano não poderia ter sido diferente. Com vibes de filme de verão e um elenco para lá de talentoso, In The Heights esbanja simpatia na cena de abertura, mas logo pequenas gotas de tédio são salpicadas na história do jovem Usnavi.
Boa parte dessa indisposição vem do fato, ou melhor, da falta de representatividade da comunidade afrolatina na obra de Chu, diretor que já havia se envolvido em polêmicas de colorismo com seu Podres de Ricos. Dentre o elenco principal, o único ator de pele escura é Corey Hawkins, o que escancara, novamente, os problemas de Hollywood com a comunidade negra de pele escura e o apagamento dos afrolatinos dentro da história latinoamericana. Quando um filme se propõe a retratar um bairro de imigrantes conhecido pela diversidade cultural, é importante que essa diversidade seja completa, e não apenas a parcela que melhor agradar.
Durante a discussão, o próprio conceito de latinidade foi revisitado, pois carrega uma narrativa única e homogênea que todo latino precisa se encaixar para ser devidamente integrado à sociedade, que privilegia os de pele mais clara e renega os indígenas e afrolatinos. Mesmo levantando as mais variadas bandeiras, Em um Bairro de Nova York deixa aquele gosto na boca de que toda uma comunidade latina foi batida no liquidificador até se transformar em uma grande e apolítica massa cinzenta.
Quanto ao resto do elenco, no entanto, é impossível não se render ao seu carisma. O sucessor do papel de Lin-Manuel Miranda foi Anthony Ramos, uma das estrelas de Hamilton, que, agora, abandona as figuras históricas para interpretar o dono de uma bodega com o sonho de voltar à República Dominicana, terra de seus pais. Cantando diretamente para a câmera, as 2h23min de filme se tornam mais agradáveis com Ramos em tela. O romance com Vanessa, interpretada por Melissa Barrera, é morno, mas somos capazes de comprar qualquer peixe que Usnavi resolver vender.
Miranda foi jogado de escanteio e fez um pequeno papel como um piragüero, que, por sinal, é bem mais relevante do que aqueles protótipos de personagem que foram empurrados para Stephanie Beatriz e Dascha Polanco. A atriz de Orange is the New Black tem, literalmente, uma fala, e rebola em todo momento que está em cena – o problema não é rebolar, é apenas rebolar. Já Beatriz ganha um verso em Carnaval Del Barrio e alguns vocativos durante o filme que deixam qualquer fã de Rosa Diaz decepcionado.
É difícil não interpretar alguns momentos de Em um Bairro de Nova York como puro empastelamento para estadunidense. O longa pincela temas sociais de forma sucinta, principalmente dentro do arco de Nina Rosario (Leslie Grace), que cutuca a elite intelectual racista dos Estados Unidos. No entanto, parece que o roteiro de Quiara Alegría Hudes duvida da revolta de seu espectador e transforma toda aquela festividade latina em passividade. O exemplo mais latente e indigesto é o que acontece com a pobre Abuela Claudia. Reprisada por Olga Merediz, a matriarca do bairro não aguenta o calor extremo, acentuado depois de três dias de apagão, e, após um número belíssimo sobre sua mama, falece por falha cardíaca.
Bem, até aí, a situação é um ótimo condutor emocional e dramático da narrativa. Tudo poderia ter sido muito bem aproveitado se a solução encontrada pelos personagens não tivesse sido uma canção animada sobre aproveitar o momento. Se fosse sua avó que tivesse morrido pelo descaso público em um blackout de dias, você cantaria “Sim, estamos sem energia/Então acenda uma vela”? Individualmente, Carnaval Del Barrio é uma ótima reafirmação cultural. No contexto do filme, é quase um desrespeito, especialmente porque os lamentos de Sonny, vivido por Gregory Diaz IV, quanto à situação do bairro são calados e incorporados à música. Paciencia y fe é o que se precisa para engolir o plot.
Jon M. Chu aproveita a liberdade que o mundo dos musicais permite para brincar um pouco com seus números musicais encharcados de fantasia. Enquanto When The Sun Goes Down se diverte com a própria coreografia e conquista pela química de Grace e Hawkins, 96,000 e It Won’t Be Long Now apostam no lúdico para completar os sueñitos de seus intérpretes. Durante o resto da trilha sonora, os residentes de Washington Heights reclamam as ruas, piscinas, salões e todo o resto que lhes é direito em meio a gentrificação do bairro, resultando em momentos de primeira linha, como na abertura In The Heights e no Finale.
Em um Bairro de Nova York divide opiniões e garante muitas críticas. O musical pode participar da corrida, mas com certeza não tem fôlego suficiente para completá-la, seja pela sua dificuldade em cativar 100% ou lidar bem com seus personagens. Ícone latino de Hollywood, Lin-Manuel Miranda precisará se esforçar um pouco mais para garantir o “O” que falta em seu EGOT. Mesmo sendo delicioso assistir um elenco verdadeiramente latino, o filme é a prova de que a representatividade precisa, realmente, representar. Pois é, ¡no me diga!