Raquel Dutra
“As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender“, define muito bem Elena Ferrante no que vem a ser o prólogo de seu terceiro romance. Lançado no Brasil em 2016 pela editora Intrínseca, A filha perdida traz o pseudônimo italiano, aclamado por suas personagens femininas e reverenciado por sua honestidade cortante, numa proposta de encarar com honestidade o que talvez seja um dos principais aspectos da experiência da mulher na sociedade – e também um dos assuntos mais intocáveis desde o início dos tempos -: a maternidade.
O pretexto para uma análise do lugar mais comum da formação da sociedade também deveria ser simples e acessível, numa direção completamente inversa à que sua complexidade pode sugerir. Então, assim A filha perdida (La figlia oscura, no original) o faz: o livro nos coloca para acompanhar a história de uma mãe e suas filhas, que recai também sobre a sua história com sua própria mãe e sua experiência enquanto filha. O recorte e o objeto escolhidos surgem de um período de férias de Leda, uma professora universitária de meia idade, divorciada e mãe de Bianca e Marta, de 22 e 24 anos, que procura descanso no litoral sul da Itália, próxima da cidade onde nasceu e cresceu, depois que as filhas vão morar com o pai em outro país.
Mas Elena Ferrante não permite que o mergulho da personagem fique apenas nas águas pacificamente salgadas e agradavelmente ondulosas. O que deveria ser um momento de repouso para Leda se transforma num processo intenso de autorreflexão, desencadeado a partir do momento em que a personagem repara uma família também de férias pela região. Ela estabelece uma identificação singular com Nina, a jovem mãe de Elena, que sempre se mostra um tanto deslocada do resto daquele grupo de pessoas – exceto quando exercendo passionalmente a sua maternidade.
Ao observar as cenas protagonizadas pela família napolitana e deixar-se afetar pela maresia enquanto sozinha e longe de casa, a protagonista de A filha perdida acaba em memórias que remexem sentimentos profundos sobre sua família, infância, casamento e, principalmente, o início de sua vida como mãe. Impulsionada pela imersiva escrita em primeira pessoa, Elena Ferrante é dolorosamente sincera sob o pretexto de verbalizar as emoções de Leda, dedicando-se quase compulsivamente a um livro repleto de ‘canetadas’ sobre seu complexo tema central, que é marcado por vivências profundas de quem o experiencia, mas também alvo de uma sacralização histórica vinda de quem o observa de fora.
Por consequência – muito bem calculada, vale ressaltar -, a única coisa que não pode ser encontrada na protagonista é o estereótipo do amor de mãe. Leda está completamente à vontade conversando consigo mesma, e nada esconde de quem toma parte de suas emoções, mostrando-se uma personagem que, muito longe de ser agridoce, é acidamente amarga. Mas ao contrário do que todas as suas camadas podem sugerir, a protagonista de A filha perdida é profundamente relacionável, como o resultado de um estudo preciso da mulher que é marcada pela inevitabilidade de pelo menos uma das duas vias trabalhadas pelo romance: a experiência de uma mulher como filha e como mãe.
Seguindo o caminho de forte oposição aos polidos padrões patriarcais, a linguagem de Elena Ferrante não procura atender nada que não seja a verdade de quem vive além de todas as expectativas impossíveis de benevolência, controle e sabedoria. A filha perdida não nos deixa enganar: a sinceridade de sua protagonista pode parecer autodepreciativa, mas Leda é austera demais até para o nível mais complexo de autopiedade e distanciamento da realidade. Vide os momentos mais críticos de sua história, onde é comum encontrar uma reação viciada da personagem, que como forma de se defender dos julgamentos, tentar compreender seu próprio comportamento e/ou até mesmo como forma de expressar a confusão mental que surge após relembrar memórias tão emocionalmente atribuladas, desabafa fria e sinceramente um “Não sei o que aconteceu”.
“Bianca uma vez gritou para mim, aos prantos: você sempre se acha superior. E Marta: por que você quis nos ter se não faz outra coisa além de se queixar de nós? Pedaços de palavras, sílabas apenas. Sempre chega o momento em que os filhos dizem com raiva e tristeza: por que você me deu a vida?”
Mas se a narrativa recusa completamente o principal aspecto dos padrões maternais, outro elemento fundamental da experiência é o que mais transborda das vivências de Leda – e incomoda o leitor de A filha perdida. Ela nutre uma consciência concreta de tudo, desde o que recebeu da mãe, seus traumas, até o que deixou para as filhas e os padecimentos das garotas. Para encerrar o panorama emocional do livro, Ferrante orienta tudo isso para desencadear o sentimento mais silencioso de suas páginas reflexivamente barulhentas. E quanto à emoção mais ingrata para uma mulher que exerce o papel de mãe, não há o que ser discutido além da própria expressão da personagem: “Era o sentimento de culpa: eu achava que todo sofrimento que atingisse as minhas filhas era fruto do já comprovado fracasso do meu amor”.
É assim que A filha perdida compõe o retrato complexo do relacionamento mãe-e-filha, aprofundando uma análise sobre relações intergeracionais. Uma menina rigidamente criada em padrões de gênero se transforma em uma mulher que cria duas garotas em uma nova época, ciente dos comportamentos maternos que lhe foram traumáticos, mas que, ao mesmo tempo, ainda carrega marcas teimosas de estereótipos sexistas e misóginos. Não por acaso, a personagem carrega como certeza a ideia de que o que mais ama em suas filhas é o que é estranho à sua própria personalidade. Assim, Leda é indiscutivelmente uma filha machucada e uma mãe que machuca.
Entre comparações, intromissões e julgamentos que orientam sua interação com Marta e Bianca, Leda constrói sua autopercepção através da visão que as filhas têm dela – ou mais precisamente, a que acredita que elas têm. Entre ser aterrorizada pela possibilidade de infelicidade das garotas e manifestar comportamentos destrutivos para aspectos importantes da vida das duas, a relação paradoxal entre as mães e as filhas se mostra cada vez mais longe de ser um ideal. E enquanto isso, a trama de A filha perdida se mostra cada vez mais próxima da realidade.
“Nas conversas com as minhas filhas, ouço palavras ou expressões omitidas. Às vezes, elas ficam com raiva e dizem “mamãe, eu nunca falei isso, é você que está dizendo, você inventou isso”. Mas eu não invento nada, só escuto, o não dito fala mais que o não dito.”
Em momento algum, porém, a escrita de Elena Ferrante coloca a sua protagonista em vestes vilanescas. É para aprofundar ainda mais a humanidade da personagem, aliás, que existe o gatilho da história, quando a imagem de Nina atrai o olhar de Leda. Ela já tem um histórico de encantamento por mulheres jovens manifestando felicidade e liberdade, como os devaneios do livro e algumas figurantes introduzem muito bem, mas encontrar alguém em seus vinte e poucos anos (aparentemente) contente com a própria maternidade é demais para aquele psicológico, que foi pego de surpresa por um ser crescendo dentro de si quando tinha 23 anos.
É que a autora de A filha perdida respeita demais suas personagens e nem mesmo a jovem-segunda-protagonista está ali apenas como um alvo de projeção. Não há como fugir da perspectiva das mães da história, afinal. Então, Nina também tem espaço para revelar suas questões à medida em que se aproxima de Leda. Oscilando radicalmente entre ilustrar uma mãe ideal e exemplificar a maternidade compulsória – que apreende as meninas desde o momento em que elas passam a existir neste mundo -, a relação das duas segue complexa. Assim, Ferrante traz fôlego narrativo ao livro, mais como história e menos como análise social, ao mesmo tempo em que funde as duas perspectivas.
“E cadê o pai dessas crianças?”, alguém que lê um texto sobre A filha perdida pode se perguntar. Aqui está mais um estalo genial de Elena Ferrante: a completa desnecessidade de mencionarmos o homem que concebeu as garotas junto de Leda diz muito sobre o tipo de história encontrada em A filha perdida. Sem precisar da representação de uma figura de paternidade totalmente ausente, o livro mostra que pouco importa sua ação dentro da narrativa. E num retrato fiel de quem absorve a ideia social de que é a principal responsável pelos filhos numa série de cuidados tidos como impossíveis de serem divididos, a amargura de Leda não o tem entre seus principais alvos.
“Assim, aos vinte e poucos anos, qualquer outra brincadeira havia acabado para mim. O pai corria mundo afora, uma oportunidade atrás da outra. Não tinha nem tempo de reparar o que fora copiado do seu corpo, como havia resultado a reprodução. Mal olhava as duas meninas, mas dizia com ternura verdadeira: são iguaizinhas a você. Gianni é um homem gentil, nossas filhas gostam dele. Ele cuidou pouco ou nada delas, mas, quando foi necessário, fez tudo o que podia, agora também faz tudo o que pode.”
Para uma história totalmente fundamentada na densidade emocional de idas e vindas de sua protagonista, A filha perdida se organiza num ritmo regular. Trazendo ordem ao caos, os capítulos de Elena Ferrante parecem seguir um padrão muito bem disfarçado, sempre desenrolando um momento presente que logo desencadeará uma reflexão íntima na personagem que narra a história. Entretanto, a maestria da autora não permite conclusões precipitadas: em momento algum, essa construção se transforma num defeito do romance, já que a progressão de sua trama é tão imprevisível quanto o caminho da mente desenfreada de Leda.
Quanto às polêmicas sobre a identidade por trás de um dos nomes de maior sucesso da Literatura contemporânea, A filha perdida estreita as possibilidades. A facilidade com que a autora arquiteta as digressões de Leda só pode surgir de um lugar radical de identificação e análise. E é fato que a universalidade do tema faz com que a tradução do livro não seja um ponto de complicação para Marcello Lino, mas é de se questionar porque a edição brasileira não apostou numa transcrição que tivesse mais proximidade com as experiências que Elena Ferrante decidiu retratar. A impressão é de que a pessoa por trás do pseudônimo tem completa ciência de que isso poderia acontecer com as suas traduções pelo mundo, porque a objetividade de A filha perdida ancora suas leituras mais profundas em representações concretas – a boneca, a pinha, o ventre, a agulha e quem sabe até a personagem que compartilha o mesmo nome da autora.
“As línguas, para mim, têm um veneno secreto que de vez em quando aflora e para o qual não há antídoto.”
É preciso ressaltar, no entanto, que a obra não se sufoca numa narrativa monotemática, mas ainda provoca reflexões sobre o próprio processo de formação de uma família, a cultura italiana e até observações linguísticas. A filha perdida em nada é o que parece. Muito mais do que ancorar um suspense ou melodrama, o romance, de forma quase metalinguística ao trabalho de sua autora, está em algo além: o maior trabalho que se pode ter na vida enquanto em uma das posições mais difíceis que se pode estar dentro da sociedade.
Para suceder o aclamado Dias de Abandono (2002), visto por boa parte da crítica literária como o seu melhor romance, Elena Ferrante voltou o seu olhar para a complexidade deste processo, envolto em estereótipos de gênero, padrões históricos de comportamento, expectativas enormes de coisas que são muito maiores do que nós. Em seus caminhos para tal, A filha perdida conclui uma observação: todas nós somos a filha perdida em algum aspecto. Menos a criação de Elena Ferrante, que é plenamente consciente de tudo isso, sabe onde está, e certamente saberá onde te encontrar.
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