Gabrielli Natividade da Silva
Depois de Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) ter apagado a memória da existência de Peter Parker (Tom Holland), em Homem-Aranha: Sem Volta para Casa, e Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen) ter libertado a cidade de Westview de sua manipulação, em WandaVision, ambos se encontraram para uma batalha intensa que atravessou universos. Em maio de 2022, foi lançado Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, um filme com muita ação e adrenalina, como é de se esperar de uma produção Marvel. A obra, porém, deixa a desejar, quebrando as expectativas de fãs que estavam ansiosos por esse momento.
Por dar continuidade ao filme e à série que dominaram o público no ano passado, o longa carrega muita responsabilidade e, por todo o hype criado, não foi difícil arrecadar uma boa bilheteria até agora. No entanto, a nova produção não acompanha o ritmo de suas antecessoras. Enquanto os diretores Jon Watts e Matt Shakman foram capazes de mesclar muito bem a ação necessária a uma história de super-heróis e o desenvolvimento interno de seus protagonistas, o mesmo não pode ser dito sobre Sam Raimi. O cineasta escolheu investir tanto em um visual interessante, sombrio e impressionante ao espectador, que quase não sobrou espaço para os personagens serem apreciados, e suas mudanças de tom acabaram se apresentando de forma rasa e apressada.
Raimi dirigiu a primeira trilogia do Homem-Aranha e também ficou conhecido por trabalhar em filmes de terror, como O Dom da Premonição, Arraste-me para o Inferno e Uma Noite Alucinante. Toda a bagagem no horror pode ser percebida nas sequências de Doutor Estranho, desde a Feiticeira Escarlate se mostrando uma bruxa quase satânica, até Strange ressuscitando uma variante sua dos mortos e lutando com demônios. Esse apoio no gênero ajuda na aplicação de um tom mais macabro, mas não é realmente necessário e se desloca do perfil da Marvel, sempre eletrizante e contagiante, sem deixar os momentos sérios de lado. O CGI (imagens geradas por computador) também deixou a desejar, o que é um tanto incomum para o MCU – Homem-Aranha: Sem Volta para Casa, por exemplo, chegou a ser indicado ao Oscar de Melhores Efeitos Visuais. O longa de 2022 apresentou erros grotescos e amadores, que dificilmente serão esquecidos, com o principal deles sendo o terceiro olho de Strange, sem esforço nenhum para parecer real.
Talvez o ponto mais empolgante de todo o roteiro escrito por Michael Waldron seja a inserção da personagem America Chavez (Xochitl Gomez) no universo Marvel. Contudo, seu potencial não foi explorado como era esperado. A garota, vinda do Paralelo Utópico, tem o poder de se teletransportar por universos paralelos. Porém, ter sido separada de suas mães causou um trauma tão grande que ela se sente incapaz de controlar seu dom. Doutor Estranho no Multiverso da Loucura é uma pequena jornada de descoberta para ela, mas, novamente, o ritmo é tão frenético que America só demonstrou algum controle aos quarenta e cinco do segundo tempo, e sua presença foi ofuscada pelo embate entre a Feiticeira Escarlate e o Doutor Estranho. Só nos resta esperar Chavez retornar em uma próxima produção e brilhar como merece.
Vale lembrar, ainda, que a introdução de America carrega o peso de apresentar uma das primeiras heroínas canonicamente lésbicas do Universo Cinematográfico Marvel. Ela fala abertamente sobre suas duas mães e carrega orgulhosamente um broche com a bandeira LGBTQIA+ durante todo o filme, gerando ataques homofóbicos por parte do público conservador. O filme chegou a ser banido em alguns países, após a Disney ter se recusado a retirar as cenas em que America se abre sobre a sexualidade da família. Apesar da negatividade, Xochitl Gomez não se abalou e segue muito feliz por ser o rosto de uma personagem tão importante. “É muito importante que a America esteja neste filme. É simplesmente enorme. E estou tão feliz que a Marvel se apegou a isso e manteve a cena lá, e é muito louco que eu seja aquela que interpreta a America”, disse a atriz em entrevista para o AsiaOne.
Apesar do longa levar o nome de Strange, quem foi responsável por roubar a cena foi Wanda. Depois de perder seu irmão gêmeo, matar o amor de sua vida e sacrificar sua família, a mulher se perdeu em uma depressão profunda que a transformou. Wanda se tornou a Feiticeira Escarlate, mas entrou em conflito interno entre ser uma super-heroína e uma vilã digna de filme de terror. Ela estava disposta a matar uma variante sua e America, com o auxílio do Darkhold (livro de magia obscura), para se reunir com seus filhos em outro universo, uma consequência de tudo que sofreu. Multiverso da Loucura seguiu a linha de WandaVision e explorou os limites de ética e do maquiavelismo da personagem. Novamente, a Feiticeira abriu mão de suas vontades para fazer o que é certo no último segundo, o que decepcionou quem esperava um desfecho diferente do apresentado na série, mas não deixou de ser interessante de se assistir. O destino de Wanda ainda é um mistério e vale a pena aguardar e ver o que essa figura tão polêmica e complexa vai fazer a seguir.
Elizabeth Olsen realmente tomou os holofotes para si, mas suas polêmicas envolvendo racismo poderiam ter afundado de vez o projeto. Em entrevistas, a atriz se referiu mais de uma vez à sua personagem como uma “gypsy” (cigana), e o problema está no fato de que o termo racista é utilizado de forma pejorativa para ofender o povo nômade Romani. Vale apontar que Wanda só tem origem Romani nos quadrinhos: o MCU a apresenta como vinda de Sokovia, país fictício no leste europeu. Portanto, não havia motivos concretos para Olsen ter utilizado o termo. Muitos alegam que a artista simplesmente não sabia o peso da palavra quando a usou, porém não foi a única vez que Elizabeth fez discursos preconceituosos na mídia. Após as acusações polêmicas, a atriz excluiu suas redes sociais e declarou que jamais retornaria a usá-las. Com os números de bilheteria do filme, não dá para considerar que o caso foi relevante para boicotar a produção, mas fica o alerta para o tipo de pessoa que a Marvel mantém em seus projetos.
Infelizmente, a atriz não é o único exemplo desse universo de heróis que apresentou ações problemáticas. Em 2021, Hawkeye se tornou um grande sucesso, mas, além dos fãs indignados, poucos realmente se importaram com o protagonista, Jeremy Renner, retornando ao papel após as acusações de agressão física contra sua ex-esposa. Chris Pratt, estrela de Guardiões da Galáxia, foi outro que se envolveu em polêmicas, a principal delas sendo seu envolvimento com a igreja anti-LGBTQIA+, Hillsong Church, chegando a ser criticado pelo ator Elliot Page. Também estão na lista Letitia Wright, com seu discurso anti-vacina, Paul Bettany, que ameaçou a vida de Amber Heard, Sebastian Stan e seu posicionamento racista e outros. O MCU tem um peso absurdo na indústria dos blockbusters e a maioria (se não todos) os atores introduzidos nas produções se tornam, automaticamente, queridos pelo público. É realmente uma pena que a Marvel continue compactuando com atitudes como essas.
O último Homem-Aranha lançado foi épico por trazer o encontro entre Tobey Maguire, Andrew Garfield, Tom Holland e seus vilões. O longa foi um acerto no fan service e, sendo assim, não foi inesperado que o segundo Doutor Estranho seguisse a mesma estratégia – mas os resultados não foram tão positivos. As participações especiais ficaram por conta do conselho dos Illuminati, composto por Professor Xavier (Patrick Stewart), Senhor Fantástico (John Krasinski), Capitã Carter (Hayley Atwell), Capitã Marvel (Lashana Lynch), Raio Negro (Anson Mount) e Mordo (Chiwetel Ejiofor), heróis com reputações de ouro e muito queridos.
Infelizmente, a sua presença foi desperdiçada, já que os personagens tiveram pouco tempo de tela antes de serem massacrados a sangue frio pela Feiticeira Escarlate. Foram muitas mortes brutais em sequência e nenhuma delas convence o espectador. É difícil crer que figuras tão emblemáticas cometeriam tantos erros amadores, demonstrando um roteiro preguiçoso e pouco condizente com o que a Marvel trouxe no passado.
Doutor Estranho no Multiverso da Loucura entra para a coleção de grandes produções Marvel, com um orçamento extravagante e cenas mais ainda. Apesar de não ser tão aclamado como os anteriores, o longa ainda é interessante para ser assistido numa noite de fim de semana – em junho de 2022, a produção foi adicionada ao catálogo da Disney+. Com alguns acertos e muitos erros, o filme não entra para a história como deveria, então o que resta para os fãs é aguardar que o MCU trabalhe em uma continuação digna e espetacular para realmente levá-los à loucura.