Guilherme Veiga
Recentemente, um curioso fenômeno tem ocorrido na indústria audiovisual, em que nomes estão saindo do seio cinematográfico hollywoodiano e se aventurando no segmento televisivo. Kate Winslet é um exemplo, com a excelente Mare of Easttown; o diretor Adam McKay é um dos responsáveis pela surpresa que foi Succession; e Nicole Kidman virou figura recorrente nas séries. Mas qual a razão desse chamariz? Qualidade, sem dúvida, é uma das respostas, o que pode fazer com que categorizemos essa época como uma nova Era de Ouro da TV e do streaming. Outros fatores podem ser listados, como liberdade criativa, roteiros desafiadores, diversidade de histórias e apostas das plataformas no formato. Todos esses ingredientes estão presentes na bula de Dopesick.
A minissérie, desenvolvida pelo ator e roteirista Danny Strong (Gilmore Girls, Empire) e com direção do Oscarizado Barry Levinson (Rain Man), é baseada no livro Dopesick: Dealers, Doctors and the Drug Company That Addicted America. Ambos contam a história da fraude farmacêutica que resultou em uma crise de opióide, assolando os EUA do final dos anos 90 e resistindo até hoje. Porém, a adaptação do Hulu opta por explorar ainda mais os meandros das corporações voltadas à saúde e as consequências da corrupção na sociedade. Por conta disso, realidade e ficção se mesclam em uma história desoladora e envolvente.
O programa não aborda o vício, como popularmente categorizado, mas os vícios. A Purdue Pharma é obcecada por poder e dinheiro. Já grande parte de seus vendedores são mentirosos compulsivos, que, na maior parte do tempo, não têm pudor nenhum em mentir. Os agentes, com seus sensos de justiça extremamente aflorados, são aficionados pelo caso. Mas aquele vício no qual você pensou no começo desse parágrafo, o destrutivo, é mais consequência de uma exploração capitalista do que propriamente uma obsessão, e por conta disso, cai nas mãos das bases da sociedade.
E o roteiro passeia pelas vertentes da sociedade, de forma muito engenhosa e sutil. Para isso, ele atribui diferentes características para cada núcleo. A família Sackler, que comanda a Purdue Pharma, por exemplo, tem toques da família Roy de Succession. Os poucos momentos de tribunal nos lembram a primeira temporada de American Crime Story, do mesmo modo que a investigação remete aos moldes de seriados policiais. Já no desenvolvimento do núcleo afetado pelo opióide, é notória a identificação com Euphoria, sem seu drama teen. Dopesick, porém, não se trata de um amontoado de cópias de formatos dramáticos. Pelo contrário, esse cenário é a constatação de que a escrita sabe o que funciona ultimamente e sabe como aplicar isso aos seus personagens de forma natural.
O núcleo em foco na minissérie é justamente o mais mundano. Centrada em uma pequena cidade mineradora, a produção aborda a primeira onda de opióides na época, através do olhar do Dr. Samuel Finnix (Michael Keaton) e de sua paciente, a jovem mineradora Betsy Mallum (Kaitlyn Dever), durante o período de testes da Oxicodona na cidade. Vendido como não viciante, o remédio foi distribuído como uma droga milagrosa no quesito analgésico, tendo aprovação até da Food and Drug Administration (FDA), autoridade sanitária americana. Logo, descobre-se que, entre os componentes do remédio, estão a desinformação e manipulação de dados. O roteiro, mais uma vez, tem seus méritos ao saber dosar tais assuntos e inseri-los como uma crítica atual e desenhada ao conceito de pós-verdade.
Dopesick não choca só por ser real, mas por tal realidade tangenciar além da discussão ético-farmacêutica. As mentes por trás do show sabem que o soco no estômago é necessário. Dessa forma, a escrita desenvolveu uma dinâmica que ora se sabe que será acertado, ora é nocauteado de surpresa. Na construção da série, também é muito fácil a identificação e o exercício de empatia (ou antipatia) com as personagens, mesmo o espectador não tendo nada em comum com eles. Isso se dá porque o roteiro reconhece que as pessoas descritas são seres humanos falhos e não têm medo de expô-los.
Tal identificação não seria possível somente com um bom trabalho de escrita. É aqui que entra o maior mérito de Dopesick: seu elenco. Seguindo a onda do mercado, a minissérie do Hulu, uma obra fechada, apostou em grandes nomes. Além de Keaton e Kaitlyn, Peter Sarsgaard (Jackie, A Filha Perdida), Rosario Dawson (The Mandalorian, Demolidor) e Will Poulter (Midsommar, O Regresso) encabeçam a lista estelar. Todos entregam atuações impecáveis e sabem construir suas personas, moldados por uma dor (tanto física quanto psicológica) intermitente pelo longo período de todo o processo. Período esse que a série soube imprimir muito bem, uma vez que é construída através de saltos temporais entre os núcleos, bem executados e nada confusos.
Porém, quem merece maior destaque são os personagens que conduzem a história. Kaitlyn Dever (Inacreditável) sabe construir os sofrimentos de Betsy, que tem que lidar com a descoberta da sexualidade em uma cidade conservadora, de forma magistral, fazendo com que o espectador se importe com a figura, principalmente com sua queda no vício. Se essa geração já tem suas atrizes, como Anya Taylor-Joy, Zendaya e Julia Garner, Dever chama a atenção e pede passagem para uma próxima. Já Keaton, dispensa apresentações e imprime um Dr. Finnix assolado pela dor do luto e que ama a profissão. Assistir a derrocada do personagem pelas mãos do ator é uma experiência avassaladora e sensacional. Outro que merece seus méritos é o Richard Sackler de Michael Stuhlbarg (Um Homem Sério), que transmite ódio e ambição incrivelmente através do olhar.
Dopesick é extremamente consciente, traduzindo uma história tão densa, real e ainda inacabada para o streaming. As escolhas criativas se provam muito acertadas para dar o tom de todo o caso. Um exemplo disso é o ato final, que, assim como um documentário, utiliza em sua montagem imagens reais do julgamento, para puxar o telespectador para realidade e dar ainda mais ênfase a toda a trajetória da série. De fato, alguns aspectos passaram despercebidos pelo crivo da escrita. Um ponto crucial que a obra não aborda é do processo só ter ido para frente quando a droga chegou nas elites. Mesmo assim, a produção é um ótimo estudo de caso de uma adaptação convincente.
A minissérie soube moldar sua tensão e seu drama através de duas doenças crônicas da sociedade: o vício e a desinformação. Os paralelos feitos entre o final dos anos 90 e hoje elucidam a persistência desses problemas e catapultam a indignação causada na audiência ao mostrar que, assim como no caso, a sociedade pouco andou para a resolução dos obstáculos, tendo até dado passos para trás. Dopesick é necessária e cirúrgica em suas críticas, e as traz ao telespectador de forma muito bem executada, seja em doses homeopáticas ou cavalares.