Caroline Campos
Eric Garner, Breonna Taylor, George Floyd. Diga o nome deles. Quase um ano depois do assassinato de George Floyd, o ex-policial Derek Chauvin foi declarado culpado pelo júri popular. Exceção, claro, já que pouquíssimos agentes da polícia estadunidense são processados por matar alguém durante uma ação de trabalho. A decisão histórica calhou de acontecer alguns dias antes da cerimônia do Oscar 2021, em que Dois Estranhos, curta da Netflix que denuncia a violência sofrida pela população negra, está cotado como o favorito para levar a estatueta para casa.
Michelle Cusseaux, Tanisha Anderson, Tamir Rice. Lembre-se do nome deles. O uso de loopings em produções audiovisuais é comum – Palm Springs, A Morte Te Dá Parabéns e Feitiço do Tempo são só alguns exemplos -, mas o peso do trabalho de Travon Free e Martin Desmond Roe é singular. Escrito por Free, mas dirigido pela dupla, Dois Estranhos coloca em tela a forma sádica e agressiva com que os agentes da lei tratam pessoas negras nos Estados Unidos, através de um personagem que revive seu assassinato todos os dias pelas mãos do mesmo policial branco.
Natasha McKenna, Walter Scott, Bettie Jones. Diga o nome deles. O artista gráfico Carter James, interpretado pelo rapper Joey Bada$$, tenta voltar para casa e para seu cachorro após passar uma noite com Perri (Zaria Simone). A tarefa seria simples se não fosse pela cor de sua pele. No primeiro encontro com o policial Merk, vivido por Andrew Howard, Carter vira imediatamente um suspeito por… fumar? Trombar em outro cara? O motivo não importa, é claro. Independente do que faça – fugir, conversar, ficar parado, não sair do apartamento – o resultado é sempre o mesmo: Carter é assassinado de forma brutal.
Philando Castile, Botham Jean, Atatiana Jefferson. Lembre-se do nome deles. A repetição do acontecimento no curta foi só uma forma de Travon Free ilustrar a chacina do povo negro que ele vê diariamente na televisão. “O que você assiste em 28 minutos, nós vivemos todos os dias”, explica o diretor e roteirista, que escreveu Dois Estranhos em apenas cinco dias. O resultado é explicitamente doloroso, mas possui um forte apelo empático na tentativa de chamar atenção para a profundidade do problema da “terra da liberdade”.
Eric Reason, Rayshard Brooks, Ezell Ford. Diga o nome deles. Sagaz ao extremo, Two Distant Strangers, no original, ainda reforça a natureza de seu vilão ao brincar com a ingenuidade do espectador, que quase cai no papinho amigável dentro da viatura que Merk tenta estabelecer com Carter. No entanto, Travon Free e Martin Desmond Roe entendem que não há como humanizar a figura truculenta da força policial estadunidense e, assim, enfatizam ainda mais o sadismo de seu personagem ao dispararem os últimos tiros que vemos na tela.
Elijah McClain, Dominique Clayton, Daunte Wright. Lembre-se do nome deles. O curta rendeu não só uma indicação ao Oscar para a equipe em Melhor Curta-Metragem em Live Action como também a radiante etiqueta de favorito ao carequinha, disputando com o palestino The Present e o estadunidense The Letter Room. Manifesto direto do movimento Black Lives Matter, a produção salpica, no fim das contas, uma pitada de esperança na trajetória de Carter James, que se mostra pronto para enfrentar mais cem tentativas a fim de voltar para casa e ver seu cachorro Jeter.
Ágatha Félix, João Pedro Mattos, Kauan Alves de Almeida. Diga o nome deles. O ciclo de violência da obra de Travon Free, infelizmente, ainda não foi quebrado. No Brasil, oito em cada dez mortos pela polícia são negros, refletindo a sociedade racista em que pessoas pretas são alvo de bala e seus assassinos saem impune. Disponível na Netflix, Dois Estranhos lista e lamenta seus mortos. O fictício Carter estava tentando encontrar seu cachorro. George estava indo no mercado. Breonna estava dentro de sua casa. Lucas Matheus, Alexandre da Silva e Fernando Henrique ainda estão desaparecidos. Lembre-se do nome deles.