Vitor Evangelista
Em 30 de outubro de 2015, a boate Colectiv, situada em Bucareste, capital da Romênia, pegou fogo. 27 pessoas perderam a vida durante o concerto da banda Goodbye to Gravity, e mais 180 saíram feridas, queimadas e em situação crítica. O documentário de Alexander Nanau leva o nome da casa de shows, mas vai além do traumático evento, investigando uma crise política de corrupção na rede de saúde do país europeu.
A abertura é deprimente. Familiares das vítimas fatais de Colectiv se reúnem numa reunião enlutada. Fora eles, uma porção de pessoas denuncia que seus entes queridos morreram no hospital, dias depois daquele catastrófico trinta de outubro. A conta não fecha: como é possível que toda essa gente tenha perecido mesmo com os cuidados médicos adequados? Uma ou outra casualidade faria sentido, dada a calamidade do incêndio, mas mais de trinta óbitos?
Cabe, então, ao Gazeta Sporturilor (Sports Gazette), um jornal esportivo, encontrar o furo da reportagem. Eles descobriram que os produtos sanitários de uma rede de hospitais eram diluídos, diminuindo sua eficácia e permitindo que bactérias nocivas entrassem em contato com os pacientes queimados, assim matando-os. Essa máfia tinha tudo planejado: desde contas estrangeiras para a lavagem de dinheiro, até documentos falsificados e uma porção de funcionários do alto escalão na folha de pagamento.
O documentário acompanha todo o processo da matéria, desde uma câmera sorrateira que filma os repórteres fotografando os frascos de desinfetantes do hospital, até as inflamadas reuniões de pauta, onde o editor-chefe, um impaciente Catalin Tolontan, busca respostas e justiça. Mas Colectiv não se resume a filmar aquela única redação. O filme de Alexander Nanau, experiente documentarista romeno, é sadio ao indagar suas principais questões. Ele se intromete em coletivas de imprensa, tem acesso ao lado de lá e ao lado de cá, sempre paciente, mas nunca desatento. O diretor, que também escreve ao lado de Antoaneta Opris, tem total ciência de onde quer chegar e como deve fazê-lo.
Ao passo que as informações no escritório da Sports Gazette ficam em segundo plano, o documentário pula para a ótica do recém-eleito Ministro da Saúde, Vlad Voiculescu. Um dos muitos ‘peões’ governamentais a dar as caras em Colectiv, Vlad é o primeiro que percebe o tamanho do bagaço que é a situação política local. Sem nos fazer simpatizar com o colarinho branco, a produção nos coloca ao lado dele, nas ferrenhas tentativas de guinar a locomotiva desordenada para um fim não tão próximo.
E, concomitante à equipe jornalística e aos políticos corruptos, Colectiv nos dá uma terceira visão: a dos sobreviventes da tragédia. São as cenas recortadas da jovem Tedy Ursuleanu que imprimem no documentário romeno a dose de humanidade que melhor lhe nutre. Resiliente, frágil, decidida, machucada, viva. Teddy diz pouco, normalmente se comunicando com seu terno olhar e seu corpo. O ensaio fotográfico com o pó amarelo é muito mais que o renascimento da jovem punk, mas tampouco é apenas uma poesia escrita às margens da tragédia.
A participação de Tedy, mais uma alegoria latente, estampando quadros em gabinetes governamentais e desfilando por museus, é o que lufa vida à obra de Alexander Nanau. De fato, sua decisão de intercalar o jornalismo, a politicagem e a arte, todos condensados na tragédia e pela tragédia, transformam Colectiv no trabalho documental mais potente da temporada.
A progressão narrativa se transforma consideravelmente rápido ao longo dos cento e nove minutos. Colectiv lida com tudo: a investigação do jornal, a crise midiática, a dança das cadeiras dos Ministros, mortes suspeitas, vídeos e cenas de crueldade e corrupção hospitalar. O incêndio é gravado e colado no filme, surpreendendo pela gravidade do caso, e nos fazendo lembrar na hora da tragédia da Boate Kiss, que ocorreu dois anos antes da de Colectiv.
Existe suficiente olhar humano na obra para que ele não se torne o retrato frio e distante de um crime humano. Esse tato afetivo pela população (que, na época, protestou por mudanças) rendeu um lugar de prestígio ao longa, conseguindo uma dobradinha difícil na seleção do Oscar 2021. Além de figurar em Melhor Documentário, Collective (o título americano) concorre em Melhor Filme Internacional, representando a Romênia.
Ano passado, o agraciado com essa dupla nomeação foi Honeyland, documentário da Macedônia do Norte, que acabou saindo vazado da cerimônia. Colectiv também não anda com a bola toda, sendo a zebra das duas categorias em que concorre. Ele está em boa companhia, pelo menos. Internacional tem na disputa o favorito dinamarquês Druk e o melhor dos 5 indicados, Quo Vadis, Aida?. Em Documentário, Time, Crip Camp e Agente Duplo engrossam a qualidade da seleção, ao lado do próprio romeno.
Em meio a uma porção de ficções mornas que abusam de investigações jornalísticas para causar a comoção, o documentário Colectiv se prostra superior. Calculadamente ácido, veementemente maduro e um bocado assertivo, o filme de Alexander Nanau levanta sobrancelhas assim que os créditos sobem. Quais tramoias políticas estão sendo encobertas atualmente?
No meio da pandemia, o Brasil não realizará o Censo Demográfico, relegando toda sua população a um projeto de mortes e descaso. Perguntas devem ser feitas, medidas devem ser tomadas. O primeiro-ministro romeno renunciou frente à crise hospitalar dos desinfetantes diluídos. O governo romeno colocou ordem na casa, e tomou as providências necessárias. Quantas Colectivs precisam queimar no Brasil para que algo seja feito? Quantas milhares de pessoas devem morrer por conta do coronavírus para que algo mude? Por enquanto, as perguntas, assim como os corpos, não param de acumular.