Vitor Evangelista
Tateando uma São Paulo incomum na grande mídia, Cidade Pássaro é um filme singular. Por quase duas horas somos conduzidos por uma cidade poluída, imunda física e espiritualmente pelo bafo do capitalismo e da pobreza. Imigrantes tomam o posto de protagonista e a seriedade de Amadi (O.C. Ukeje) é a régua moral da narrativa, na incessante busca pelo irmão Ikenna. Parte da Mostra Brasil da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Cidade Pássaro voa sem amarras, com a corrente do ar à seu favor.
Coprodução do Brasil e da França, o filme é falado tanto em português e inglês quanto na língua natal de Amadi, igbo, natural da Nigéria. Ele é um músico sensível mas obstinado, que chega em São Paulo na procura do irmão mais velho, que se bandeou para cá para trabalhar como matemático em um instituto de tecnologia, deixando a família e a noiva no continente africano. Cidade Pássaro já mostra à que veio quando desnuda as mentiras de Ikenna, papel de Chukwudi Iwuji, logo de cara.
Amadi descobre as falácias do familiar, que inventou até mesmo a empresa que dizia trabalhar. Além disso, o homem está desaparecido e não há uma alma viva que saiba do seu paradeiro. A direção do veterano Matias Mariani guia o espectador no banco do passageiro de Amadi, e sua abordagem moderna da cidade de SP é vital para que nós, junto do protagonista, entendamos as circunstâncias da história. São Paulo mata sonhos, joga esperanças no rolo compressor e quem sair respirando desse ecossistema já é por si só um vencedor.
As duas vidas do irmão são descobertas numa caça ao tesouro, ao mesmo tempo física e emocional. Amadi vai se deslocando pelas vielas da cidade, pelas pastelarias e lan houses. A ambientação do filme grita a mundanidade que constrói, são cenários ordinários e relacionáveis, habitados por personagens que parecem igualmente reais. Ao passo que o homem busca e encontra suas pistas, o longa recompensa o espectador, colocando-o também na solução do mistério do desaparecimento de Ikenna.
Mais interessado em perguntar do que responder, o roteiro, escrito à muitas mãos, em momento algum deixa a peteca cair. Além de ser assinado pelo diretor, o texto é creditado à Chika Anadu, Francine Barbosa, Júlia Murat, Maíra Bühler e Roberto Winter. Ao contrário do que possa parecer, a aglomeração na sala de escrita não embanana os acontecimentos e o passo rítmico da trama. Foram chamados roteiristas nigerianos para consultar e injetar vitalidade real na proposta do filme, auxiliando na criação de representações culturais que fujam de estereótipos.
Cidade Pássaro acerta na mosca em saber motivar Amadi na busca pelo irmão. Chega um ponto que o paradeiro físico de Ikenna não importa, ele apenas quer respostas, essas que são estocadas na Caixa de Pandora até o derradeiro desfecho da obra. Menos catártica que deveria ser, a finalização do filme ainda ressoa com imponência. O ancestral se choca com o moderno, e leves flertes com o realismo fantástico laceiam os argumentos e conclusões.
Digno de ser destrinchado, não por acontecimentos misteriosos, mas por seus temas e abordagens, Cidade Pássaro é um achado e tanto. São pequenas nuances inéditas ao cinema mais comercial, que enriquecem quem assiste. Sofia Coppola nos contou em 2003 os perigos e dores de não conseguir ser entendida e, em 2020, Matias Mariani escancara esse terror. Cidade Pássaro não hesita ao afirmar que a dúvida é melhor que a resposta.