Davi Marcelgo
Das discussões de sala de aula às do Twitter, Capitu traiu ou não Bentinho? Narrado pelo protagonista, a ausência de veredito provoca o clássico embate da obra de Machado de Assis. Em Capitu e o Capítulo, adaptação de Dom Casmurro, o diretor Júlio Bressane mantém o olhar subjetivo do narrador enquanto passeia entre a dúvida e a ilusão. Na trama, Bentinho (Vladimir Brichta) acredita que sua esposa Capitu (Mariana Ximenes) o traiu com Escobar (Saulo Rodrigues), seu melhor amigo.
Antes de ajustar a história do maior adultério do país para a linguagem visual, Bressane já havia feito sua própria versão de outro romance machadiano, Brás Cubas (1985), releitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Narrando através de imagens de mares, esqueletos e lapsos da infância do protagonista, o diretor criou sua versão com autoria. Em Capitu e o Capítulo, ele mantém seu estilo e cria uma unidade para as adaptações do escritor brasileiro.
Assim como na obra original, as memórias são contadas pelo protagonista em sua versão mais velha, agora chamado de Dom Casmurro (Enrique Díaz), que inicia seu relato com a seguinte frase: “nesse livro que aqui escrevo, eu confessarei tudo que importar à minha história”. Só entra na confissão aquilo que ele acha relevante. O enredo segue a versão contada por Bento e também a conjuntura de Machado de Assis em como realizar a grande questão de traidora ou vítima.
A partir de arquivos de vídeo, como os da água do mar, o esqueleto e o microfone, o diretor monta novas significações aos acervos usados em Brás Cubas de 1985. Machado de Assis deu forma a sua fluída escrita ao não priorizar descrições, fazer capítulos curtos e ser inventivo. Assim, o escritor se fez singular no seu tempo, sendo muito difícil de encaixá-lo dentro de uma escola literária. O cineasta também recria a façanha ao não adaptar nos moldes ‘copia e cola’, mas entendendo o autor e o que faz do clássico ser considerado tal, o assimilando ao seu estilo de direção e fazendo um exercício da linguagem cinematográfica.
Em meio aos devaneios de Casmurro, ele evita verborragia com vídeos sugestivos que (talvez) possam adentrar no subjetivo do crânio de cada personagem. Bressane também recria o conflito do adultério, ainda que deixe claro sua posição a favor de Capitu através das iluminações escuras do rosto de Dom Casmurro, ao carinho que filma Ximenes e às cores que compõem seus takes de flores – tranquilas, frias e ornamentais.
Assim como na obra original, a direção permite o espectador tirar sua própria conclusão e o induz a cair na paranoia através de um vestido vermelho que não cobre a região dos trapézios. Isso acontece até mesmo quando Capitu fica entre paredes, oprimida pela bela casa fruto do matrimônio que coloca o homem no cume do guarda-chuva, embora os mesmos cantos também possam encurralar uma adúltera quando descobrem seu maior segredo.
O longa parece ter sido convencido pelas indagações de Casmurro, ao produzir, através do título, um paronomásia com as palavras “Capitu” e “capítulo”. Aquela é um substantivo próprio, esta possui muitos significados: a divisão de um livro em partes, como também o ato de caracterizar alguém ou até mesmo um artigo acusatório. A primeira definição faz sentido quando se relaciona a um filme que adapta um livro, um trecho de um romance. A escolha do título Capitu e o Capítulo é de suma importância para já adentrar o espectador na história, que ora é uma pequena parte da vida sob a ótica de Bentinho, ora um artigo que define e acusa a esposa de ser adúltera, infiel e lasciva.
As personagens femininas, Capitu e Sancha (Djin Sganzerla), estão confortáveis consigo e suas vontades. Elas falam abertamente sobre sexo e querem ser tocadas (e não de uma forma romântica, mas para sentirem os prazeres da carne). Isso a coloca numa dissonância de expressões, principalmente da esposa em comparação à Bentinho, calado e reprimido sexualmente; colocou ilusões na cabeça. Bressane nos permite conhecer personagens para além do que o narrador conta. Não só o diretor faz isso, como também os atores, que conseguem dialogar com o público sobre as partes omitidas por Bentinho.
Mariana Ximenes dá vida a esposa de Bentinho: cigana de olhos oblíquos, sensual e afrontosa. Porém, a atriz mergulha nos infelizes olhos de cor verde, dentro da vastidão de um mar, mostrando-se incompleta e querendo ser tocada, sentida e viva. Os closes na paulistana e a transposição de imagens modificam o discurso do paranoico, a distanciando do que seu marido pensa que ela é. Não é à toa que ela não completa o rosto pálido do amado no início do filme.
Em Capitu e o Capítulo, Ximenes diz o que não é dito com sua atuação. A intérprete já demonstrou ser uma grande artista versátil, seja no drama de Machado de Assis, como a vilã amedrontadora da novela Passione (2010) ou a pureza que evolui para o rancor de sua Aninha em Chocolate com Pimenta (2003). A Capitu da atriz é quase definitiva, impondo na voz a grandiosidade vista por Bento e colocando os holofotes para si em todas as cenas.
Já Vladimir Brichta encarna um Bentinho paranoico, com forte linguagem corporal: sempre curvado e com expressões de atrapalhado, até quase ingênuo, como se ainda não fosse adulto. Em Capitu e o Capítulo, ele se mostra totalmente imaturo, numa representação da elite brasileira que o escritor propôs no século XIX – e que em 2023, na atemporalidade do texto do escritor carioca, ganha a ideia dos homens do nosso tempo.
Dom Casmurro esconde-se em paredes de livros, lendo poesias que não viveu sob um quarto escuro. Ele fita e admira grandes poetas de outrora que morreram jovens, como Junqueira Freire e Álvares de Azevedo. Estes, exagerados e melancólicos, como define um dos versos da Lira dos vinte anos: “Foi poeta – sonhou – e amou na vida”. Será que Bentinho também não foi um grande sonhador?
Antes de Dom Casmurro começar a enunciar, existe outra história sendo contada por meio de chapéus. Esses acessórios reaparecem em outras cenas e são objetos de foco, indicando – por uma revelação da trama – que os donos sejam Escobar e Bentinho. O cineasta conta uma história que o protagonista esconde. Há um jogo de investigação sútil e sugestivo acontecendo em Capitu e o Capítulo, transgredindo a versão do narrador, executada por toda uma produção e direção que conhece – e ama – o material original e, para além disso, que domina muito bem a linguagem do Cinema.
No entanto, tudo isso pode ser mera interpretação. O que fica é a proposta de Júlio Bressane, que, assim como Machado de Assis, deixou para gerações decidirem se a protagonista do título traiu ou não para patamares não só de conteúdo, como também forma. Muito pode ser discutido da execução do diretor: escolhas de enquadramentos, figurinos, montagem, ângulos ou se alguma personagem no meio disso só é bastante insegura.