Gabriel Oliveira F. Arruda
O anúncio de Robert Pattinson como o novo vigilante noturno da DC Comics provocou intensas reações entre os entusiastas mais fanáticos, desinteressados em separar o currículo extenso e impressionante do ator de seu papel como galã da saga Crepúsculo. No entanto, para aqueles de nós maduros o suficiente para não se importar com tal associação (o que é um morcego para quem já foi vampiro?), a expectativa para o novo longa só aumentou: afinal de contas, o que seria o Batman de Pattinson?
É claro, nem sempre essa versão do Cruzado Encapuzado pertenceu a ele. Dizer que o novo filme solo do protetor de Gotham City teve um desenvolvimento conturbado seria um eufemismo: o que antes seria uma história de ação estrelada e dirigida por Ben Affleck, após sua introdução no sisudo universo compartilhado de Zack Snyder, tornou-se uma nova interpretação de seu protagonista, no embalo de produções como o Coringa de Todd Phillips, completamente avulsa à qualquer ambição de universos expandidos. A difícil tarefa caiu na mão de Matt Reeves, diretor e roteirista responsável por desenvolver e terminar a trilogia de prequels de Planeta dos Macacos, mas que ganhou fama pelos terrores Cloverfield – Monstro e Deixe-me Entrar.
Batman (ou, numa tradução mais precisa de seu título original, O Batman) nos apresenta um vigilante ainda em início de carreira, afundado de cabeça em sua própria definição vingativa de justiça, mas que é assolado pelas dúvidas que sua vocação desperta. Tudo isso é intensificado pela aparição do Charada, um misterioso assassino serial que tem a elite de Gotham em sua mira, revelando segredos sobre a cidade que ameaçam destruir seus alicerces e jogá-la no abismo. Nesse cenário, somos introduzidos a algumas das figuras mais icônicas do cânone do Morcegão, tais como o comissário Gordon (aqui ainda tenente), a ladra Mulher-Gato e o criminoso Pinguim. Mas talvez nenhuma iconografia seja tão importante quanto a própria Gotham City.
Desde cedo a Gotham de Reeves se distingue de outras iterações cinematográficas pela chuva torrencial que cai toda noite nos telhados dilapidados e arranha-céus retilíneos. Seja como pingos nas janelas ou como gotas escorrendo pelo queixo escultural de Pattinson, há uma umidade intrínseca à essa visão específica que permeia todo o longa e dita os movimentos da fotografia de Greig Fraser (Duna, The Mandalorian): com uma distinta inspiração em tramas de detetive noir, a cidade, definida por seus becos escuros e sinais de neon luminosos, assume uma forma infinitamente mais aterrorizante que versões anteriores sem sacrificar sua verossimilhança. A presença de um bilionário que se veste de morcego para espancar criminosos e de um assassino que deixa charadas nas cenas de crime assume um tom visceral, tornando-se uma extensão natural, mas ainda disruptiva, desse ambiente sombrio.
Mas, afinal, “quando um homem é uma cidade?” Quando Gotham muda, seu guardião silencioso também deve mudar. Diferente do bilionário carismático que estamos acostumados a ver, Pattinson descreve sua versão de Bruce Wayne como um “esquisitão perdido”, isolado do resto da sociedade em sua caverna de segredos, onde ele planeja maneiras de extravasar sua raiva nos criminosos de Gotham, suas únicas companhias sendo seu leal mordomo, Alfred (Andy Serkis) e o cauteloso tenente Gordon (Jeffrey Wright), seu contato frágil com a polícia de Gotham e parceiro na investigação para achar o Charada. Embora nem tão brutal quanto o Homem-Morcego de Michael Keaton, há uma fúria contida neste que impulsiona sua performance além de qualquer outra interpretação em live-action.
Grande parte da trama lida com o propósito de sua identidade secreta e a razão que o leva a pôr a máscara, apesar de misericordiosamente não conter mais uma cena das pérolas de Martha Wayne se espalhando pelo Beco do Crime. Negando veementemente uma nova história de origem para o personagem, Reeves e seu co-roteirista, Peter Craig, exploram o nascimento do alter ego de Bruce Wayne através das dúvidas internas e de revelações chocantes que as extrapolam, conversando intensamente com o papel do herói como um símbolo de Gotham City, tirando lições do excepcional Batman: A Máscara do Fantasma.
Sem as constrições comuns a filmes de origem, Batman consegue se aprofundar com clareza em seu elenco coadjuvante, não apenas introduzindo rostos que terão mais desenvolvimento em futuros filmes ou séries, mas lhes dando espaço para agir dentro da trama e serem afetados por ela. Dentro de um gênero cada vez mais definido por blockbusters artificialmente longos e inchados, o longa de Matt Reeves é um dos raros casos em que sua duração de quase três horas se justifica na ambição por trás de seu tom intimista e sua visão monumental e detalhada de uma Gotham definida por contrastes.
Há um incrível elemento tátil em Batman. Seja o novo capuz costurado (junto de um uniforme marcadamente mais ágil que anteriores), o Batsinal em que o ícone do morcego parece ter sido martelado à força dentro de um holofote, ou o novo Batmóvel saído diretamente de Mad Max, a produção do longa reforça os elementos mais crus de sua fotografia, criando uma visão suja e incrivelmente fluida do mundo que seus personagens habitam. Indo de contrapartida à muitos dos preceitos visuais do gênero instaurados na última década com a ascensão do Universo Cinematográfico da Marvel, Fraser cria uma identidade única para um filme de super-herói, unindo referências díspares em uma coesão afiada e hipnotizante, catapultando-o diretamente para a vanguarda da próxima temporada de premiações.
Essa identidade também se estende na trilha sonora de Michael Giacchino, outro aspecto celebrado do longa que vem suscitando burburinho de Oscar para 2023. O experiente compositor (que já havia trabalhado com Reeves em Planeta dos Macacos: O Confronto e A Guerra) tece diferentes facetas do Batman, seus aliados e inimigos, bem como a própria cidade que os pariu, em uma procissão rítmica, alucinante e bombástica, refletindo as transformações emocionais de seu bilionário desajustado. O legado de Danny Elfman e Hans Zimmer continua intacto: ainda havemos de ouvir um tema ruim do Batman no Cinema.
No coração de sua história, Batman é um mistério, mas um no qual a identidade do antagonista é claramente menos importante do que a máscara que ele usa. Se afastando da energia maníaca de Jim Carrey na galhofa de Batman Eternamente, o Charada de Paul Dano é modelado com base no Assassino do Zodíaco, o infame serial killer que assolou a Califórnia ao final dos anos 60. Cobrindo seu rosto com uma máscara e óculos por cima, ele deixa códigos elaborados e cifras que apenas o Maior Detetive do Mundo (que finalmente conquista essa alcunha com suas deduções sagazes e um olhar minucioso) pode desvendar.
No entanto, apesar de suas inspirações realistas, a câmera o captura como vários dos assassinos icônicos do Cinema de Terror: na precisão fria de Michael Myers em Halloween, os jogos sádicos de Jigsaw em Jogos Mortais ou até mesmo nas ligações telefônicas e quizzes inesperados de Ghostface em Pânico, o filme utiliza esses arquétipos reconhecíveis em uma de suas combinações mais audazes, reintroduzindo um vilão caricato como um adversário temível e imprevisível. Porém, a violência inerente tanto ao slasher quanto ao noir aqui fica de lado devido aos aspectos comerciais do longa e sua classificação PG-13, impedindo que seu antagonista choque a audiência assim como choca Gotham.
Em uma performance psicopática, Dano faz do Charada um nêmesis à altura de Pattinson, refletindo algumas das piores tendências do herói e servindo como um cúmplice de seus defeitos. À todo momento a direção de Reeves acompanha os movimentos desses personagens com um olhar empático, notando suas semelhanças e criando a dualidade que os une: através de suas máscaras, ambos representam as falhas sociais e morais de Gotham, em níveis distintos, mas complementares, e denunciam suas verdadeiras identidades para o mundo. O conflito interno de Bruce Wayne ao ter de confrontar essa dicotomia deturpada está no cerne desta versão do personagem, que renega inteiramente sua persona pública em favor do Cruzado Encapuzado.
Com uma abordagem muito mais metódica e calculada que um blockbuster normal, o longa constrói maravilhosamente bem a tensão entre as figuras peculiares dessa cidade escorregadia. A introdução do submundo criminoso de Gotham não sai desse tom, com figuras como o Pinguim de Colin Farrell (irreconhecível em sua maquiagem cartunesca) e o Carmine Falcone de John Turturro servindo de ganchos narrativos para macular a visão em preto e branco que Bruce tem do mundo. Aqui, Matt Reeves captura habilmente um humor mórbido que não destoa do resto do longa, mas que reforça seus elementos mais bizarros, ajudando ainda mais em sua caracterização do espaço e das personagens.
É também durante essa introdução que conhecemos a Selina Kyle de Zoë Kravitz, que contracena explosivamente com o detetive taciturno de Pattinson (a química entre os dois não ficou apenas nas muitas capas de revistas). Apesar de ainda não ser exatamente a gatuna descolada que conhecemos dos quadrinhos, Kravitz acha a humanidade em suas motivações e, junto de Reeves, traça o arco narrativo mais forte da personagem no Cinema até então.
Dona do tema que mais se assemelha ao noir, o relacionamento da personagem com o Morcego é, assim como nos quadrinhos, uma aliança tênue de objetivos, ditada pela necessidade, mas que se desenvolve em uma troca honesta de sentimentos. Seja quando lutam ou quando conversam através de suas máscaras, a atração entre os dois estoura em momentos chaves da trama e impulsiona ambos a serem melhores do que o mundo que os criou. Se o Charada é o espelho sombrio de tudo de pior que há no Batman, a Mulher-Gato é a pessoa que finalmente lhe oferece a chance de fazer a diferença e, talvez, salvar alguém.
O Batman de Matt Reeves é uma colcha de retalhos, uma tapeçaria de diferentes referências, que conversam umas com as outras em virtude da paixão que seus realizadores injetam em cada decisão criativa tomada na construção desta homenagem a uma das figuras mais duradouras da ficção. O orçamento de 200 milhões de dólares não se faz valer em sequências grandiosas de ação, mas no extremo cuidado e deliberação dado à caracterização de seus espaços e as pessoas que o habitam. Foi a primeira vez em muito tempo que, assistindo a um filme de super-heróis fantasiados, me senti conectado não apenas a eles, mas ao mundo que desejam tanto salvar.
É estranho, numa cultura tão obcecada com histórias de salvadores, o quão pouco nós os vemos efetivamente salvando pessoas que não sejam figurantes anônimos esquecidos na cena seguinte. Seria Batman uma resposta, uma vingança até, a essa apatia pelos mundos que abrigam essas figuras heroicas, mas que tão raramentGe praticam heroísmo, examinada por meio de seu protagonista tão fundamentalmente falho quanto a cidade que ele jura tentar proteger? Mas não, há amor demais, paixão demais, para que essa raiva o defina: quase que impossivelmente, ao final de seu mistério tenebroso, somos deixados com esperança.