Bruno Andrade
É sempre curioso observar a forma como a violência é veiculada no Audiovisual. Historicamente, a ideia de um assassino de aluguel deprimido não é tão inovadora; na realidade, continua explorada após décadas de representação em videogames e filmes de adaptação. A bem da verdade, é algo sempre deixado nas entrelinhas dos roteiros do gênero, cujas cenas finais giram em torno das redenções platônicas e apaixonadas dos frios matadores, que se rendem ao sentimentalismo e à reivindicação das próprias condições individuais (O Justiceiro [2004], Hitman [2007], Max Payne [2008]).
Parece estar imposta, de forma silenciosa, uma condição depressiva na qual o sentido reside na incansável busca pela “justiça” – improvável, abstrata, distante e egoísta. Mas é aqui que Barry se distancia de todas essas realizações: a condição melancólica do protagonista se estabelece, desde o princípio, como o mote para suas ações, e o ato de cometer os crimes visa, na verdade, preencher seus dias para que ele não pense nos problemas que envolvem sua condição existencial.
Mais do que humanizar aquilo que a cultura dos filmes blockbuster transformou num ideal mítico, Barry sempre tentou apontar para as diversas facetas da tristeza, sentimento que perpassa todos os papéis da trama, mas que parece oculto pelo rótulo de “Comédia” – a verdade é que o humor está na linha tênue entre a tristeza e a euforia. O curioso, porém, é a premissa do personagem homônimo: deprimido e insatisfeito com a própria vida, Barry (Bill Hader) se transforma em um assassino de aluguel. Assim, em seu ano mais sombrio, o seriado inicia-se pouco tempo depois do massacre que finalizou a temporada anterior, e após romper com Fuches (Stephen Root), seu “empresário dos crimes”, o protagonista está numa fase ruim, num esquema de “assassinato por aplicativo”.
Desde o começo, Barry apostou na exploração da melancolia do protagonista, e em diversas cenas focou nas ligações com seu próprio passado, marcado pela violência. Isso porque, diferente do que se possa imaginar, não se trata somente de uma forma de ganhar a vida – e, como ex-fuzileiro, essa seria a atividade que melhor se aplica às habilidades de Barry –, mas porque, justamente, o personagem precisa encontrar um sentido para viver; a violência, de certa forma, estava ali. Com o passar do tempo, outros horizontes se tornam possíveis, porém parecem contaminados desde o início.
Transfigurado em uma figura dostoievskiana, ele começa, então, a questionar se sua essência clama somente pela violência – há espaço para a contemplação artística (através do Teatro e atuação, em seu caso) e a paz, afinal? Aos moldes do protagonista de Memórias do Subsolo (1864) – ou Raskólnikov, de Crime e Castigo (1866) –, Barry vive sob uma condenação imposta por ele próprio. Ainda assim, o enredo da terceira temporada gira em torno de uma reviravolta: agora, as famílias das vítimas do anti-herói sabem que ele é o assassino e querem matá-lo. Parte significativa da trama – em certo sentido, até mesmo aquilo que a sustenta – são esses familiares numa busca implacável pela morte de Barry. É como se, num emaranhado de situações complexas ao estilo Charlie Kaufman, o jogo virasse.
Não é por acaso que, em 2022, Barry chega aclamado no Emmy. O seriado disputa 12 categorias, somando 14 indicações, e embora com menos indicações que na temporada anterior, pela qual venceu 3 das 17 delas, segue como uma das favoritas nas principais categorias da lista: Melhor Direção em Comédia, Melhor Roteiro em Comédia, Melhor Ator em Comédia e Melhor Ator Coadjuvante em Comédia. No meio do embate entre as favoritas Ted Lasso, Hacks e Abbott Elementary, Barry também concorre na principal categoria do seu gênero, como Melhor Série de Comédia.
Além do fato das indicações jogarem luz ao episódio 710N, no qual há um plano-sequência de fôlego com Barry fugindo de motoqueiros assassinos, o Emmy 2022 também parece notar a cabeça pensante que, invariavelmente, evidenciou-se no terceiro ano da produção: Bill Hader. Duas vezes vencedor do Emmy de Melhor Ator em Comédia – as duas em que concorreu –, o ator é novamente o favorito da categoria.
Neste ano, Hader estreou na direção de Barry, e se desdobrou entre a atuação mais sombria do protagonista e a primorosa condução das diversas nuances que outros papéis precisaram realizar para acompanhar o novo ritmo ditado por ele. Sua condução é tão boa que, além da série ter sido renovada para uma quarta temporada, Bill Hader será o diretor de todos os novos episódios. Um dos exemplos mais gritantes de sua visão como comandante das escolhas narrativas do seriado está na atuação de Sarah Goldberg, que, a partir da liberdade proporcionada sob a nova direção, entrega uma Sally Reed dramática e visceral, protagonizando uma das cenas mais impactantes de toda a season 3. Sem qualquer razão factível, ela é um dos nomes esquecidos no Emmy 2022.
Talvez o que mais chame a atenção em sua ausência nas indicações seja o fato de que a cena, estrelada por Goldberg, diga bem mais do que parece dizer. Enquanto espanca o homem que tentou matá-la – após a tentativa falha de executar Barry –, o personagem de Bill Hader se levanta e assiste em um silêncio abismal a agressividade com que Sally Reed se defende. A Edição de Som, que insere e abafa o áudio à medida em que a porta do quarto onde Sally e o motoqueiro assassino estão, faz com que se tenha uma imersão angustiante. Mas o que essa sequência diz, na verdade, é que Barry – provavelmente pela primeira vez – se dá conta que falhou em proteger aqueles que ama. Em algum momento, o castigo por seus crimes chegaria.
Nas duas primeiras temporadas, Sally Reed foi a personificação da cultura egocêntrica de Hollywood, na qual prevalece o estilo “faça-você-mesmo” e as formas rasas de se compreender os dilemas sociais – a típica personagem das Comédias que faz tudo pela fama. Como se tivesse saído de um best-seller de auto-ajuda, Reed dizia frases prontas e se colocava à frente de situações apenas para benefício próprio. O amadurecimento da personagem demonstra o poder que uma boa direção e uma atuação primorosa podem ter ao conceber uma catarse tão estarrecedora quanto a que assistimos. Não somente na cena já citada, mas em uma espécie de insatisfação carregada por ela durante toda a temporada, deixando bem mais evidente o Drama do que a Comédia em si.
O que Bill Hader conseguiu observar e representar nos episódios dirigidos por ele foi a condição desses personagens coadjuvantes, que tem suas vidas marcadas negativamente pelos relacionamentos com Barry. Sally Reed, por exemplo, se vê vítima de um relacionamento abusivo com o protagonista bem antes do momento em que quase é assassinada por um criminoso que, a princípio, não chegaria a ela se não fosse pelo namorado. Hader, por sua vez, transforma Barry num indivíduo que oscila entre o maníaco frenético e o depressivo existencialista.
A verdade é que há pouco espaço para piadas na terceira temporada, e o grande mérito talvez seja, pela primeira vez, a condução da série para um caminho no qual paramos de sentir empatia com o assassino frio que o protagonista sempre foi. Neste ano, Barry se estabeleceu através de uma forte sensação de contenção. Nós não vemos o estado do homem que Reed espanca com um taco, nem sabemos qual é o animal misterioso que está devorando os amigos de NoHo Hank (Anthony Carrigan) na cela ao lado da sua. É um ano marcado pelos fantasmas da vida de Barry, e isso se reflete na direção fotográfica, que projeta os episódios com um tom mais escuro em comparação aos anos anteriores.
Próximo ao final, quando parece que Barry vai realmente morrer, ele vê Sally Reed e Gene Cousineau (interpretado por Henry Winkler, indicado novamente na categoria de Melhor Ator Coadjuvante em Comédia, a qual venceu pela primeira temporada de Barry) numa praia repleta por suas antigas vítimas – uma espécie de representação do “bardo”. Embora ele e esses dois personagens não estejam mortos como os demais, o dano que Barry causou em suas vidas parece mais irreparável do que ele realmente acredita. O fim da temporada sintetiza isso: enquanto Reed foge de seu horizonte, tudo o que ele quer é o perdão de Cousineau por ter matado sua esposa – algo que ele, efetivamente, não tem.