Vitor Evangelista
Vinte e um anos atrás, Bronco Henry morreu. Estamos em 1925 e Phil (Benedict Cumberbatch), seu aprendiz, amigo e muito provavelmente amante, ainda não superou essa perda. Sua maneira de lidar com o luto é se tornando um completo babaca, abusivo com o irmão mais jovem e tóxico com seus funcionários do rancho em Montana. Sob a direção sempre alerta e nada ociosa de Jane Campion, a Netflix constrói no íntegro Ataque dos Cães um drama acrônico, atemporal.
Na história adaptada do clássico The Power of the Dog, escrito por Thomas Savage, dois irmãos administram juntos um negócio envolvendo o pastoreio de gado, até que o mais jovem conhece uma viúva e acaba trazendo ela e o filho para morarem todos debaixo do mesmo teto. Phil, personagem de Cumberbatch, é avesso à ideia da noiva recém-chegada na família e faz de tudo para que ela se sinta desconfortável.
Com essa sinopse, é esperado que o longa, uma das apostas da Netflix para a vindoura temporada de premiações, caia em um supérfluo jogo de gato e rato. Porém, Jane Campion escreve e dirige sem a pressa do imediatismo clichê, mas com a ideia de contar uma história rica em detalhes, nuances e significados. Comecemos então pelos de Phil. A carcaça de sujeira que lhe cobre cada fatia exposta de pele não foi apenas maquiagem, já que seu intérprete se rendeu ao mítico Método de Atuação para dar vida ao protagonista.
Além de não se banhar com frequência, Cumberbatch revelou que teve envenenamento por nicotina três vezes, que procurava se manter distante de Kirsten Dunst nas gravações, aprendeu a tocar banjo e que ficou “no personagem” por todo o período de filmagens. A rodagem na Nova Zelândia, terra natal da já Oscarizada Campion, recria com primazia as planícies desérticas e o tempero rochoso que a Montana estadunidense exalava nesse Velho Oeste.
Assim como o design de cenários, Phil vive no passado. Ele passa boa parte da história apenas rememorando acontecimentos e se fechando nessa jaula temporal que o mantém seguro. Bronco Henry vive em sua memória, o tempo é bom lá. Quando George (Jesse Plemons) conhece a futura esposa Rose (Dunst), Phil percebe que o irmão, enfim, escapou do ontem, tornando sua solitária estadia ali dentro cada vez mais insustentável.
A saída é a violência, verbal, física, emocional. A certeza de que, falando grosso, todos o obedecerão. O que Jane Campion não esconde, todavia, é o caráter comportamental de seu hábil protagonista. Metido entre os bois e vacas, assobiando, castrando animais e arrancando suas peles, Phil é, ele mesmo, uma cabeça de gado. Ele opera sistemática e mecanicamente, tem medo do desconhecido, segue regras criadas por si mesmo para que a segurança e a ordem sejam mantidas.
Quando filma o homem se afogando num mar de bovinos e de poeira, a direção de fotografia de Ari Wegner diz muito. Tudo muda quando, além da chegada de Rose, vem junto no pacote o tímido Peter (Kodi Smit-McPhee). Primeiro feito de trouxa por Phil, o jovem acaba despertando sentimentos conflitantes no caubói. A relação da dupla constitui o coração de Ataque dos Cães, mesmo que o filme demore um pouco para chegar nesse clímax.
Dividido em atos “temáticos”, o foco, a princípio, é a tensão entre Rose e sua nova moradia. A morte de seu primeiro marido, que compartilha ecos da violência de Phil, guarda sequelas dormentes na existência da personagem de Kirsten Dunst, atriz que internaliza muitas de suas dores, dando veracidade e afeto ao estado de, sem mais nem mesmo, estar deprimida. Papel que cai como luva para a artista que deu vida ao suprassumo da tristeza em filmes como As Virgens Suicidas e Melancolia.
Dessa vez, Dunst é peça coadjuvante de toda a ação, por mais que sua estadia no rancho e no cotidiano de Phil seja catalisadora para a relação nascente entre o cunhado e seu filho. Contracenando com seu companheiro na vida real, Jesse Plemons, Dunst assegura que Ataque dos Cães não concentre apenas machos famintos, adicionando uma densa abundância de emoção, dureza e, mais perto do fim, um alívio que vem de bom grado depois de uma jornada tão carregada.
Plemons parece estar na sua zona de conforto, em mais um papel do cara legal, silencioso e meio banana, mas seu personagem serve, como tudo de Ataque dos Cães, em favor do protagonista. As omissões e a submissão de George falam bastante sobre a criação dos irmãos e, ao passo que Phil abraçou a grandiloquência da má educação, o caçula busca sobreviver pelas beiradas. Por isso, cenas de troca entre os atores causam tamanho desconforto, ninguém deveria ter a liberdade de tratar o outro daquela maneira. Mas Phil tem.
Cão que ladra, não morde. Jane Campion fez seu nome imprimindo autenticidade em visões banais do mundo. Em O Piano, filme que lhe rendeu uma Palma de Ouro e um Oscar de Roteiro Original, o objeto de estudo é a Música e a libertação. Já em Em Carne Viva, ela coloca suas apuradas lentes sob uma mulher agoniada e um policial fanfarrão, desconstruindo o papel do romance na década de noventa.
Ataque dos Cães marca seu retorno ao formato do qual esteve afastada desde 2009, quando realizou O Brilho de uma Paixão e rumou para a TV, criando a limitada Top of the Lake, um dos passos de Elisabeth Moss pós-Mad Men e pré-The Handmaid’s Tale. Não importa de que maneira Campion queira contar a história, é certo que a abordagem será diferenciada. Homenageada com um prêmio Tributo por seu trabalho como Diretora no Gotham Awards 2021, a neozelandesa enfatizou a singularidade do projeto atual.
Em The Power of the Dog, Jane Campion quer colocar caubói na linha, quer impor limites, quer ressignificar o que a masculinidade tóxica significa e como é representada. Ela vai além, servindo a Benedict Cumberbatch seu papel mais suculento, prestes a ser banqueteado, com camadas de emoções escondidas, palavras não ditas e uma relação entre mentor e aprendiz que enriquece o escopo do que significa um relacionamento amoroso.
À sua maneira de brincar com a tentação, o filme impossibilita que Phil e Peter se entreguem ao corpóreo, apenas petiscando interações mais próximas. Seja na maneira como o rancheiro finca uma vistosa viga de madeira no chão, ou ainda na tenacidade do toque ao trançar a pele de boi em um chicote, os símbolos fálicos rodeiam a percepção humana, acompanhada, primorosamente, pela trilha sonora estoica de Jonny Greenwood, em apenas um de sua trinca de trabalhos fílmicos em 2021.
Por definição, o caubói é alguém que pastoreia, que cuida e supervisiona, intervém bruscamente quando há necessidade e tem um senso aguçado de proteção. Nos anos em que a relação dos vaqueiros com os indígenas perpassava conflitos, o cowboy Phil equilibra a violência e o trabalho de audição. Ele é gerente de um negócio povoado por medo, inquietação e preconceito. Quando recebe os pais, nas participações quase que relâmpago de Frances Conroy e Peter Carroll, ele não demonstra amor ou afeto.
A aversão a qualquer afago que não seja o de Bronco Henry o repele. Peter é a exceção, mas demoramos a enxergar essa brusca inversão de valores. O salto temporal entre os capítulos que dividem o escrutínio e a atenção não se encarrega de mastigar o que Phil pensa, como age ou porque o faz. Kodi Smit-McPhee pode passar despercebido por quem está em busca de uma interpretação barulhenta ou reativa. O mesmo vale para a Rose de Kirsten Dunst, papel que coloca a prova as capacidades de instinto protetivo da atriz.
Jane Campion mantém todos fora de suas respectivas zonas de conforto, repetindo o exercício que já é característico de sua relação com o público. Do lado de fora da Netflix, não sabemos se Phil é mocinho ou vilão, se merece nossa torcida ou nosso asco. Quando conversa com Peter sobre as montanhas que cercam sua vida, o personagem se assusta no momento em que o jovem enxerga, com clareza, a forma do cão nas construções rochosas. Mais cedo, um dos trabalhadores questiona Phil sobre a mesma porção de natureza (“Tem algo lá?”), ao que ele rapidamente responde: “Não, se você não consegue ver, não tem”. Ainda bem que Jane Campion consegue.