Caroline Campos
“Até hoje, um quinto da Mongólia foi delimitado para a mineração. 391 lagos, 344 rios e 760 nascentes secaram e muitos estão envenenados pela mais ativa indústria de mineração do mundo”. É com essa declaração que Byambasuren Davaa decide por encerrar seu novo filme, As Veias do Mundo, exibido na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Integrante da Perspectiva Internacional, o longa mongol-alemão é uma ode à resistência das populações nativas contra a tomada de suas terras.
Assim, conhecemos Amra (Bat-Ireedui Batmunkh), um garoto de apenas 12 anos que vive nas estepes da Mongólia com o pai, a mãe e a irmãzinha. A família se mostra muito unida desde o começo, mas é o relacionamento de Amra e Erdene ( Yalalt Namsrai), seu pai, que se destaca na primeira metade do filme. O menino sonha em participar do Mongolia’s Got Talent, que começou a selecionar participantes na sua escola com destino a Ulan Bator, capital do país, mas seu desejo se cruza com a luta de seu pai – o líder determinado dos Nômades contra a empresa mineradora global que quer expulsá-los de suas casas na busca pelo ouro.
Byambasuren Davaa, que já foi indicada ao Oscar pelo documentário Camelos Também Choram, delineia o filme de forma sutil, focando na trajetória de Amra para lidar com a perda do pai, que morre subitamente em um acidente de carro, e, ao mesmo tempo, honrar o legado de enfrentamento à exploração que ele conduzia. No entanto, o fantasma da crise familiar assombra os personagens, desestabilizando, principalmente, a relação de Amra com sua mãe, Zaya (Enerel Tumen), que já confrontava o marido sobre aceitar a indenização e deixar a propriedade. O garoto, então, começa a sabotar as máquinas da mineradora às escondidas, levando o povo local a pensar que o espírito de Erdene havia ressurgido para continuar lutando pelo lar e pela família.
O jovem Bat-Ireedui Batmunkh é a peça mais importante para a beleza da narrativa de As Veias do Mundo. O ator encarna um Amra corajoso, que precisa aprender a cuidar da família e conviver com os sentimentos de culpa e dor que cercam seu amadurecimento e a saudade da figura paterna que o acompanhava no cotidiano. Em uma performance belíssima da canção Golden Veins, que aborda a importância da preservação ambiental e cultural, Amra é selecionado para o programa em meio a um turbilhão de emoções desenfreadas que ainda o paralisam e o impedem de seguir em frente.
Cada plano do longa poderia ser emoldurado tamanha a beleza dos cenários mongóis escolhidos por Davaa, sempre coloridos, porém sóbrios o suficiente para não parecerem saturados. A árvore sagrada, constantemente visitada pelo menino em busca de conforto, se impõe sobre a paisagem ao seu redor como um antro ancestral de poder, desafiando os exploradores a sequer tocá-la. É uma ambientação digna para um filme tão delicado sobre família e perda, repleto de atuações condizentes e em sintonia com a proposta do longa.
A sequência final da apresentação televisionada de Amra no show desperta sentimentos de paz ao ver o menino afirmando que, toda vez que canta, sente o pai ao seu lado. No meio da globalização – que envolve histórias sobre a Mercedes-Benz e a valorização de seu símbolo -, o Mongolia’s Got Talent aplaude incessantemente a voz magnífica de Batmunkh, enquanto o filme se fecha enfatizando que Ouro é sofrimento e sobrevoando as paisagens mongóis ainda não perturbadas pela mineração.
Die Adern Der Welt, no original, aborda dois tópicos principais: a importância da família num momento de dor e perda e a situação de países super explorados pelas companhias de mineração. Seus 96 minutos são uma homenagem à terra de onde viemos e para onde vamos, que nos molda e nos define para o resto de nossa vida, sagrada como o solo.
Quando a última veia do mundo estiver exposta, tudo será extinto, e a Terra Não Será Mais Dourada. A tristeza e a resistência podem virar combustível em mãos determinadas, e Amra, com certeza, está abastecido – pois, no longa mongol, a mensagem é clara: a diferença entre luto e luta está a uma vogal de distância.