Vitória Silva
O meio cultural está em constante mutação. Com o passar dos anos, fomos alterando e desenvolvendo as nossas formas de consumir conteúdo, seja pelo meio impresso, radiofônico ou televisivo. Assim como os meios mudam, o seu público também muda. Temas que no século passado eram tratados com normalidade não são mais cabíveis nos dias atuais. Dessa forma, os produtos culturais foram recebendo novas vestimentas. Hoje, já sabemos que nem toda narrativa precisa ter uma mocinha que vai atrás do seu par romântico, assim como estereotipar personagens homossexuais não é (e nunca deveria ter sido) motivo de piada.
Essa revolução iria se estender, é claro, para o mundo das novelas. Uma das principais formas de entretenimento do público brasileiro, grande adepto do sofá. Com a ascensão dos streamings e a concorrência cada vez maior de seriados, a teledramaturgia precisou se modificar. Assistir histórias com desfechos sem pé nem cabeça já havia se tornado algo rotineiro, “coisa de novela”, como se o gênero tivesse que ser sinônimo de algo mal feito. Não dava para sustentar um público cada vez mais em busca de abordagens sérias e profundas com os mesmos temas batidos de sempre.
E o meio novelesco sentiu essa necessidade de mudança. Temáticas relevantes passaram a ser cada vez mais trabalhadas no horário nobre, e algumas até provocaram discussões que se elevaram para o ambiente social, como o machismo abordado em O Outro Lado do Paraíso e a questão da transição de gênero em A Força do Querer. Recentemente, a reprise de Fina Estampa na Globo até causou certo espanto e repulsa, por uma abordagem já retrógrada e que se pautava apenas em um arco de vingança de uma personagem histérica e sem motivações.
Um dos lançamentos mais recentes da emissora veio para romper de vez com padrões novelescos até então impostos. Escrita e criada por Manuela Dias, Amor de Mãe já nasceu com altas expectativas. A autora foi a mesma que deu vida para a minissérie Ligações Perigosas e a grandiosa Justiça, que foi indicada ao Emmy Internacional. Manuela fez escola em como trabalhar narrativas realistas e com críticas sociais como pano de fundo, conseguindo entrelaça-las da maneira mais natural possível. Seu novo desafio era fazer o mesmo em um dos produtos principais da televisão: a novela das nove.
Para isso, Dias decidiu contar sua história a partir de uma das figuras centrais da vida de qualquer brasileiro. Amor de Mãe envolve a narrativa de três matriarcas, de diferentes personalidades e classes sociais: Lurdes (Regina Casé), Vitória (Tais Araújo) e Thelma (Adriana Esteves). A carismática dona Lurdes é o grande laço que conecta todas elas. Mãe de cinco filhos e natural da cidade fictícia de Malaquitas, do Rio Grande do Norte, a empregada doméstica tem como motivação principal encontrar o filho do meio, Domênico, que foi vendido por seu ex-marido quando ainda era criança.
A novela se inicia com ela contando sua história para a advogada Vitória Amorim, para quem iria trabalhar como babá logo depois. Ao contrário de Lurdes, a personagem de Tais Araújo ainda tinha o anseio de se tornar mãe, mas, além das dificuldades em engravidar, também havia perdido o seu primeiro bebê. Então, ela adota o menino Tiago (Pedro Guilherme Rodrigues), que chega para mudar suas percepções sobre a vida e seu olhar duro e frio sobre algumas questões.
Nesse início, Lurdes também conhece Thelma, que, logo no primeiro encontro, descobre que tem um aneurisma cerebral. Dona de um restaurante português no Bairro do Passeio, ela é mãe do jovem Danilo (Chay Suede). E nutre uma paixão completamente obsessiva e manipuladora em relação ao filho, que evidencia um forte sentimento de superproteção, especialmente pelo fato dele ter sobrevivido a um incêndio em sua casa quando ainda era criança, que tirou a vida de seu marido.
Com os três arcos principais construídos, as narrativas passam a se encontrar nos mais diversos aspectos. A questão ambiental é uma das temáticas centrais de Amor de Mãe, com as constantes tentativas de grupos ativistas em derrubarem Álvaro da Nóbrega (Irandhir Santos), dono da empresa de plástico PWA. Colocar um empresário corrupto e autor de diversos crimes ambientais como vilão principal é transpor para a tela a realidade que observamos todos os dias no noticiário. Entre suas ações ilícitas, o magnata é responsável por despejar dejetos de sua indústria na Baía de Guanabara. E tem como seu maior rival o ambientalista Davi Moretti (Vladimir Brichta), que mais tarde se relacionaria com Vitória.
Em meio a essa sinuca de bico, a advogada passa a enfrentar um dilema ético e moral, e a maternidade se mostra como a grande potência transformadora em sua vida. Se antes ela pautava suas atitudes apenas em formas de se favorecer e crescer profissionalmente, agora ela busca aquilo que possa servir de bom exemplo e motivo de orgulho para seus filhos. Com isso, decide romper o contrato com Álvaro, mesmo que custe perder todos os luxos e regalias da vida que costumava ter. Habituados com histórias de mulheres pobres que surpreendentemente conseguem enriquecer, passamos a assistir uma narrativa oposta.
A precariedade do sistema educacional brasileiro também é uma das temáticas sociais incorporadas na trama. A partir das vivências de Camila (Jéssica Ellen), filha caçula de Lurdes, como professora de História do colégio público Luis Gama, são tratadas questões como a falta de investimento e apoio governamental. A personagem ainda protagoniza discursos com reflexões essenciais em suas aulas, e inicia a ocupação do colégio com seus alunos, um símbolo do movimento estudantil.
Assim como toda novela costuma se adaptar aos acontecimentos do cotidiano, Amor de Mãe teve que se moldar para um cenário inesperado. Com a pandemia de covid-19, as gravações foram interrompidas, e retornaram apenas no segundo semestre de 2020. Diante desse novo contexto, Manuela Dias repensou o roteiro da segunda fase de sua produção, trazendo a crise sanitária para o universo de seus personagens, algo já adotado por outras produções da Globo. Além de ser importante tratar sobre o assunto no meio midiático, foi uma ótima maneira de adotar protocolos de distanciamento nas cenas de forma natural.
Aproveitando o seu núcleo de profissionais da saúde, a obra ainda conseguiu retratar a rotina difícil daqueles que trabalham dentro dos hospitais. No entanto, com um vírus que tem um comportamento incerto tanto para a ciência quanto para a sociedade, a novela não foi isenta de erros. Desde a adoção de protocolos incorretos, até beijos em acrílico e o desuso de máscaras em momentos oportunos. Ainda é uma realidade arriscada de ser retratada rigidamente na ficção, mas talvez a falta de alguns cuidados também tenha sido um bom exemplo para demonstrar o descaso da população brasileira diante desse cenário tão agravante.
Em meio a todo esse contexto pandêmico, a segunda fase da trama deu continuidade para a narrativa de Lurdes em busca de Domênico, que descobre a verdadeira identidade do menino e passa a, involuntariamente, ter Thelma como sua principal inimiga. A obsessão em fazer de tudo para não perder seu filho atinge níveis cada vez mais doentios e criminosos, com a entrega de cenas que só Adriana Esteves seria capaz de realizar. Em conjunto, Danilo volta a questionar a identidade de sua mãe biológica, indicando para um caminho que mais tarde vai se cruzar.
Nesse desenrolar, os demais núcleos da novela pareceram apenas agir para sustentar a narrativa principal. Enquanto alguns ficaram patinando sob a mesma história, outros personagens tiveram destinos previsíveis e de fácil solução. Com um arco já quase resolvido na primeira fase, Vitória se envolve em tramas que não vem a acrescentar nada diretamente, como o retorno inesperado de sua mãe, interpretada pela atriz Eliane Giardini. Por outro lado, Penha (Clarissa Pinheiro) e Leila (Arieta Côrrea), que no início eram figuras pouco significativas, têm a melhor evolução como personagens, além de ganharem um arco de redenção essencial ao encerramento da trama.
A reta final de Amor de Mãe ainda contou com uma sucessão de acontecimentos trágicos, e bem difíceis de serem digeridos em meio a triste realidade que nos assola. Talvez a brusca redução de capítulos tenha condensado todas as catástrofes de uma vez só, e o surgimento de um equilíbrio foi imprescindível. Assim, emergiram alívios cômicos como a princesa unicórnio, protagonizada por Durval – o que com certeza não é uma reclamação, pois Enrique Díaz é genial em tudo que se propõe -, e a investida cada vez maior na construção de pares românticos, um clichê do qual não foi possível se isentar.
Além da troca frequente de casais, outros acabaram surgindo inesperadamente, e em muitos momentos se tornaram a única motivação dos personagens. Érica (Nanda Costa) acaba se apaixonando por Davi, acompanhando a recuperação do mesmo após sofrer um atentado a mando de Álvaro. No mesmo passo que Lídia (Malu Galli) e Magno (Juliano Cazarré) se encontram e se unem para conseguirem curar a doença da filha Brenda (Clara Galinari). Enquanto Ryan (Thiago Martins) reata com a tenista Marina (Erika Januza), e protagonizam um enredo raso e banal sobre a cultura do cancelamento.
O encontro mais aguardado da televisão nos últimos tempos demorou, demorou muito, mas finalmente aconteceu. Após sucessivas, e até arrastadas, tentativas de fugir da prisão criada por Thelma, Lurdes conseguiu encontrar seu filho Domênico. Uma cena que não precisa ser poupada de elogios, não somente pela entrega da atuação de Regina Casé e Chay Suede, mas por todo simbolismo que ela carrega. É o marco e representatividade da força materna. Uma verdadeira homenagem a todas as mães.
E se por um lado comemoramos a morte do cruel Álvaro da Nóbrega, encerrando de vez seu duelo com Raul (Murilo Benício), o fim da antagonista Thelma foi um tanto reflexivo. Mesmo com todas as atrocidades cometidas pela personagem, é questionável pensar que sua única motivação sempre foi o bem e o amor de seu filho, por mais excessiva que fosse. Após ter o aneurisma estourado, ela consegue encerrar sua trajetória com aquilo que se dedicou a vida inteira. Morreu sendo chamada de mãe.
Assim, o laço criado pelas três protagonistas se finaliza de fato, e consolida os diversos papéis maternos explorados ao longo dos 125 capítulos de Amor de Mãe. Lurdes finalmente tem sua família completa, após anos de luta, com seus cinco filhos reunidos. Vitória se vê na posição de matriarca e profissional que sempre almejou, ao lado do seu marido Raul e seus três filhos. Sua irmã, Natália (Clarissa Kiste), deixa de ser mãe solo ao reatar seu casamento com Durval, enquanto, no mesmo páreo, Miranda (Débora Lamm) inicia um segundo relacionamento, após o divórcio com Matias (Milhem Cortaz). Por fim, Betina (Isis Valverde) está prestes a iniciar a vida materna ao lado de Sandro.
Manuela Dias não reinventou a roda ao trazer como narrativa principal a busca de uma mãe pelo seu filho perdido, algo já trabalhado por inúmeras vezes em telenovelas, como vimos de forma similar em A Favorita, por exemplo. Sua inovação se dá pelo tratamento que ela atribuiu para um tema tão complexo e controverso, que é o Amor de Mãe. E fez isso sob o olhar brilhante e cinematográfico de José Luiz Villamarim, que assumiu a direção artística da obra. Dias errou e acertou, como todas novelas e produções fazem, mas proporcionou momentos impactantes que poucos conseguem atingir. Que a autora continue a contar belas histórias, que nos façam entreter, refletir e também emocionar.
Amor de Mãe é um verdadeiro divisor de águas na teledramaturgia brasileira. Com uma nova estética novelesca, a produção conseguiu entregar uma narrativa profunda e que traz temas importantes para a plataforma mais popular que qualquer Netflix, que é a televisão. E ainda nos presenteou com uma das personagens mais queridas da história das novelas. Dona Lurdes e sua família já deixam profundas saudades.