João Batista Signorelli
Nesse oceano infinito de informações que é a internet não faltam aquelas imagens de WhatsApp motivacionais com citações de celebridades ou personalidades famosas tratando com otimismo o inevitável envelhecimento do ser humano. Em contraponto, o comportamento social regularmente observado não poderia ser mais diferente: cada passagem de ano, seja para um cinquentão ou um adolescente, equivale a ter mais uma parte de sua juventude roubada, e a andar mais um passo em direção ao buraco da velhice. Em meio esse um otimismo saturado e pouco eficiente para uma população cada vez mais sem perspectiva, Agente Duplo é um antídoto para a contradição do envelhecer contemporâneo, uma medicação sem efeitos colaterais.
Tendo estreado no Festival de Sundance no início de 2020, o filme da diretora Maite Alberdi teve uma ótima trajetória em festivais internacionais. Como resultado, foi a escolha do Chile para representar o país na corrida para o Oscar de Melhor Filme Internacional, e acabou na seleta pré-lista de 15 selecionados para a categoria. Mesmo recebendo a indicação para Melhor Documentário, não conseguiu emplacar na mesma dobradinha de Honeyland e de Collective, não ficando entre os finalistas internacionais. Ainda assim, o filme representa uma certa tendência recente de Documentários selecionados para Filme Internacional (como o próprio Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou no Brasil) e merece destaque por ser o único longa latino-americano dentre os selecionados à premiação deste ano.
Apesar do reconhecimento como não-ficção, os primeiros minutos de Agente Duplo de cara já levam o público a questionar o seu caráter documental. A fotografia com planos estáveis em tripés e iluminação suave e equilibrada, a atmosfera noir cômica, os personagens caricatos, e a própria trama sobre um viúvo de 83 anos contratado por uma agência de detetives para se infiltrar em um asilo: tudo parece planejado e calculado demais para ser real. A sensação é de que se trata de uma espécie de Borat, misturando personagens ficcionais à situações reais, mas até este carregava em sua estética um certo ar de realidade, o que praticamente não acontece aqui.
Mesmo assim, a escolha de abrir o filme com um tom aparentemente ficcional ou de mocumentário não poderia ser mais certeira. A mistura de humor e mistério fisga o espectador logo de cara, e a trajetória do protagonista Sergio Chamy cativa, fazendo a história se sobressair a ponto de a discussão de se o que é visto ser realidade ou ficção perder a importância, pelo menos em um primeiro momento. Apesar disso tudo, ao contrário do que pode parecer, a trama apresentada e os personagens não são meras invenções de seus realizadores, mas sim frutos de um intenso trabalho de observação, gravação e seleção do material obtido, a partir de uma quantidade enorme de arquivos gravados.
Foram mais de 300 horas de material, das quais foi aproveitada pouco mais de uma hora; uma seleção certeira para escolher as possíveis narrativas mais interessantes para dar destaque, além das situações mais pertinentes para expressar a própria mudança do entendimento que a diretora tinha a respeito da mensagem que queria transmitir. O ponto de partida foi do treinamento de Sergio com um detetive contratado por uma cliente para passar 3 meses em um asilo observando se uma moradora, a mãe da cliente, recebe maus tratos, devendo comunicar ao seu chefe qualquer situação questionável que fosse observada. Se a intenção aqui era usar o pretexto investigativo para fazer um filme-denúncia, o rumo ao qual a obra se encaminha não poderia ser mais diferente.
O próprio protagonista, sereno e aberto a novas experiências, até tenta focar na investigação e expor alguns problemas do asilo, mas vai gradualmente perdendo o interesse nela, ao passo que vai se aproximando e fazendo amizade com algumas moradoras do local. A denúncia almejada perde o foco, pois não há muito para ser denunciado, e atenção é transferida para as pessoas que ali habitam, seus desejos, dilemas, e o modo como vivem os últimos anos de sua vida, momentos estes capturados com muito respeito e carinho. Ao mesmo tempo que poderia-se falar no dilema de invadir a privacidade das pessoas retratadas, elas parecem se sentir valorizadas pela companhia da câmera, conforme reflete a diretora em entrevista.
A vida no lar de idosos por vezes parece um retorno ao colégio: há burburinhos com a chegada de alguém novo, festas de aniversário, fofocas e paixonites, amizades, dores e desejos. Testemunhar também a forma como o outrora solitário Sérgio se abre aos poucos à aproximação em um contexto social, nos mostra que o envelhecer não precisa ser sinônimo de afastamento social ou de tristeza, ainda que o asilo muitas vezes não seja capaz de impedir estes problemas. De qualquer modo, o problema real que Sergio buscava investigar talvez não estivesse nas imediações do asilo, mas na realidade abrangesse algo muito maior do que o que faz uma instituição ou outra. Se o filme faz alguma denúncia de fato, ela não aponta para o asilo, mas para fora dele.
Mais do que qualquer problema interno do asilo que possa existir, é a razão social pela qual o asilo existe em primeiro lugar que merece uma reflexão. Ainda que a cliente do detetive pareça a priori se importar com sua mãe a ponto de contratá-lo para vigiar os seus cuidados, a situação se inverte ao absurdo quando percebemos que a mesma filha nunca se dá ao trabalho de visitá-la e ver como ela está. Muito mais fácil é apontar o dedo para uma instituição ou outra do que mudar o próprio comportamento, quem dirá de uma sociedade inteira. Mas raramente o caminho mais fácil é o certo.
Em outra entrevista, a realizadora Maite Alberdi fala sobre como mudou de percepção a respeito da terceira idade e dos asilos ao longo da produção do filme. “No asilo, os funcionários fazem o que devem fazer (…), não podem suprir o carinho de suas famílias, não é sua responsabilidade. (…) Os idosos morrem nos asilos porque lhes é cortado o vínculo com a sociedade”. Ainda que possibilitem novas interações sociais, os lares de idosos não são capazes de suprir todas as necessidades de uma pessoa mais velha, e essas dificuldades são meros sintomas de um problema muito maior. Mas ainda assim, é lindo ver como diante de tantas problemáticas, ainda é possível encontrar alegria em um asilo, e até esperança.
Agente Duplo, chamado de The Mole Agent em inglês, nos mostra que os idosos podem ser tudo, menos um peso morto. Alguns estão dispostos a trabalhar em uma área na qual nunca tiveram qualquer experiência. Outros querem passar mais tempo com sua família. Outros ainda, querem conhecer pessoas novas, fazer amizades ou até se apaixonar. Só é preciso lhes dar a oportunidade, da mesma forma que seria dada a jovem com um longo futuro pela frente. É, talvez as frases motivacionais que a sua tia manda no grupo da família não estejam tão erradas assim.