Enrico Souto
Entre as jornadas monumentais, épicas e maiores que a vida de Princesa Mononoke e O Castelo Animado, e as histórias mais comedidas, intimistas e descaradamente infantis de Meu Vizinho Totoro e O Serviço de Entregas da Kiki, A Viagem de Chihiro é a amálgama perfeita dessas duas facetas de Hayao Miyazaki. Não que Mononoke não tenha retratos de serenidade e um forte prisma emocional, nem que Kiki não disponha de cenas grandiosas e homéricas – o diretor costuma trabalhar em uma zona cinzenta que uma categorização meramente dualista não seria capaz de cobrir –, porém, olhando para trás 20 anos depois, é indiscutível que, nesse título, essas potências, provenientes do gênero de realismo mágico, encontram seu equilíbrio definitivo, a partir de uma narrativa sensível e tocante sobre os infortúnios de crescer e se tornar adulto, rompendo barreiras culturais e de linguagem como nenhuma outra mídia fez antes.
Apesar de algumas obras isoladas explorarem as convenções estéticas dos animes em técnicas de animação digitais, como os filmes de Final Fantasy dos anos 2000 e o mais recente lançado longa de Lupin III: O Primeiro, é fato que o mercado de animações do Japão mantém-se bastante fiel às técnicas tradicionais do 2D, diferente do mercado cinematográfico do Ocidente, que se converteram inteiramente para a computação gráfica. Visto isso, A Viagem de Chihiro, que foi lançado pela Studio Ghibli em 2001, nasceu exatamente nesse período de transição para as animações ocidentais, em que os desenhos à mão eram gradualmente substituídos pelo CGI e o 3D. Nesse contexto, faz sentido que o longa mais aclamado de Hayao Miyazaki seja não apenas o único anime, mas também a única animação 2D da história do Oscar a ganhar o prêmio de Melhor Animação.
Essa condição transicional também se manifesta nas técnicas utilizadas para a produção do filme. Sim, A Viagem de Chihiro é predominantemente animado através de desenhos à mão, mas pontualmente também se mescla essa prática com o uso de CGI, semelhante ao que fazia a Disney com seus filmes do Renascimento nos anos 90, principalmente em planos de movimento. Essa técnica, que hoje caiu em desuso e até pode causar certo estranhamento para públicos mais novos, traz um ar nostálgico e refrescante que, para os votantes que já estavam acostumados a seu uso nas animações ocidentais, pode ter influenciado o seu bom rendimento nas premiações.
Além do método inventivo de animação, os aspectos técnicos do filme imediatamente saltam aos olhos. A direção de arte foi claramente conduzida com maestria; a paleta de cores utilizada é colorida e saturada, traduzindo precisamente a diversidade daquele universo e das criaturas que a compõem; a estética estapafúrdia e surrealista do design de personagens é cheia de identidade e coloca o design fotorrealista e sem personalidade dos filmes da década de 2010 da Walt Disney Animation Studios no chinelo; e a trilha sonora composta por Joe Hisaishi, parceiro de longa data de Miyazaki, é simples e funcional, comunicando através do minimalismo com arranjos facilmente reconhecíveis tanto para uma audiência nostálgica quanto para novos públicos.
A Viagem de Chihiro abre com a visão de um cartão, que acompanha um lindo buquê de flores rosadas. Nele, está escrito “Boa sorte, Chihiro! Nos encontraremos novamente!”. Essas são flores de despedida, que a garota que segura o buquê, Chihiro, ganhou de seus amigos ao descobrirem que ela mudaria de cidade. Nesse momento, a acompanhamos no caminho de sua nova casa: deitada no banco de trás do carro lotado de malas, deprimida, enquanto seus pais conversam no banco da frente, tentando animá-la. Então as flores rosadas do buquê que Chihiro abraçava melancolicamente morrem, levando ao desespero da menina. Ela até tenta recorrer aos pais, mas eles não lhe dão atenção. Nesses poucos segundos já recebemos informações o suficiente sobre o entorno da trama. Chihiro está chateada por ter que se mudar e deixar seus amigos, enquanto seus pais, mesmo que se esforcem, não a entendem e ignoram seus anseios.
No caminho para a casa nova, a família se perde e acaba em frente a um longo túnel. Desde a chegada deles, Chihiro fica apreensiva e se atenta a aspectos estranhos do local, desde as estátuas excêntricas espalhadas pela entrada até o vento que se comporta bizarramente, que seus pais não percebem. A garota tenta avisá-los mais uma vez, que novamente desdenham de seu comportamento. Passando pelo túnel, eles descobrem um parque abandonado e, a despeito do incômodo da filha, começam a adentrar no lugar, deparando-se com um restaurante vazio que servia um grande banquete. Os pais, sem pensar duas vezes, se servem da comida, que Chihiro nega veementemente.
Por consequência, não demora muito para que suas preocupações se concretizem e o local se revele uma casa de banho para espíritos gerida por uma bruxa autoritária chamada Yubaba, onde humanas como ela não são bem-vindas. Além disso, seus pais, que agiam de forma descuidada, são capturados e transformados em porcos. Sendo assim, Chihiro, agora presa nesse universo fantástico e hostil, é forçada a trabalhar para o estabelecimento por sua própria sobrevivência, enquanto busca salvar seus pais e retornar ao mundo dos humanos. Na jornada, ela cresce e amadurece, contando com a ajuda de novas amizades construídas pelo caminho.
A partir dessa sinopse, é fácil relacionar A Viagem de Chihiro com o clássico da literatura infantil Alice no País das Maravilhas, escrito pelo matemático inglês Charles Lutwidge Dodgson no século XIX, e que mais tarde seria adaptado pelos estúdios de Walt Disney. Ambos contam histórias sobre garotas na fase inicial da puberdade que acabam caindo em um mundo fantasioso e surreal, lidando com figuras singulares e curiosas, e ambos são atravessados por discussões sobre amadurecimento e a transição da infância para a vida adulta. Esse ponto não será muito abordado aqui – um texto anteriormente publicado no Persona faz esse paralelo com muito mais aprofundamento –, porém o que cabe ser dito é que, entre as duas obras, há uma diferença notória de tom.
À medida que, assistindo a adaptação da Disney, é perceptível que Alice no País das Maravilhas parte de uma ótica bem mais moralista, retratando uma Alice curiosa e imprudente que, ao ignorar os avisos da mãe, se coloca em perigo, A Viagem de Chihiro compreende as complexas nuances presentes nas relações entre pais e filhos. No segundo caso, os responsáveis pelas atitudes irresponsáveis e levianas que os levam para esse novo mundo supostamente quimérico são os próprios pais, enquanto Chihiro tem pouquíssima agência sobre suas ações e é levada para lá contra sua vontade. Ademais, enquanto Dodgson decide explicitar que a experiência de Alice não passou de um sonho, Miyazaki deixa essa questão dúbia e abre à interpretação do público.
Essas e outras diferenças, na realidade, advém principalmente de um atrito histórico, territorial e cultural fortíssimo entre o Ocidente e o Oriente. Para todos os efeitos, A Viagem de Chihiro é totalmente imerso na cosmovisão japonesa, desde a construção de diálogos e a linguagem de câmera até a direção de arte e o storytelling. E é impressionante como uma obra localizada fora da nossa realidade como Ocidente e com sensibilidades totalmente distintas das nossas consegue nos tocar de formas tão intensas. Nesse enfoque, uma das convenções culturais e estéticas que Miyazaki mais explora em suas obras, e que nesse filme ganha um destaque particular, é o conceito filosófico e artístico de Ma.
Ma (間) é uma palavra japonesa cujo significado pode ser traduzido como ‘entre-espaço’, ‘espaço intermediário’ ou ‘intervalo’. É um conceito filosófico difundido na cultura japonesa, que influencia a sua forma coletiva de enxergar o mundo e está presente em todas as suas manifestações culturais desde a antiguidade, das artes plásticas e visuais até a arquitetura, Música e Cinema. Michiko Okano, professora da Universidade Federal de São Paulo, explica em seu artigo Ma – a estética do “entre” como é difícil para a sociedade Ocidental, alicerçada em concepções filosóficas como o Dualismo Platônico ou o princípio aristotélico de ‘ser ou não ser’, compreender a dinâmica abstrata, intangível e até contraditória do Ma, que nega a lógica racional e bipolar do Ocidente e abre caminho para uma terceira via de compreensão.
O Ma se apresenta nesse meio termo, em que ele não é nem um, nem outro, contudo pode ser os dois ao mesmo tempo; um ‘não-lugar’, à medida que representa um momento de pausa, de transição e de intervalo, porém que não se caracteriza pelo mero vazio ou falta de significado, e sim pelo potencial de significado que se manifesta dele. Um exemplo de manifestação do Ma na cultura japonesa é o longo caminho de entrada de um santuário xintoísta, que pode ser visto como dispensável em uma leitura superficial, mas que tem a função de preparar espiritualmente o visitante para adentrar no espaço sagrado, deixando as questões mundanas no caminho e imergindo na experiência que logo virá.
“O Ma, enquanto possibilidade, associa-se ao “vazio”, que, distinto de uma concepção ocidental cujo significado é o nada, é visto como algo do nível da potencialidade, que tudo pode conter, e, portanto, da possibilidade de geração do novo. É, por conseguinte, o vazio da disponibilidade de nascimento de algo novo e não da ausência e da morte.”
– Michiko Okano
Visto isso, a presença do Ma em A Viagem de Chihiro é marcante e influencia diversos aspectos da obra. Diferente das animações ocidentais, que costumam apresentar um ritmo mais acelerado e de constante frenesi e urgência, visando fisgar a insólita atenção dos pequenos, Miyazaki aqui valoriza planos longos, cenas contemplativas e instantes que não necessariamente avançam a narrativa, mas que ajudam a dar senso de espaço e tempo para cada cenário, fortalecendo as conexões entre os personagens e entre o público. Além disso, esses momentos singelos, assim como o caminho para um santuário xintoísta, também são preenchidos por nossos próprios pensamentos como espectadores, dando espaço para que possamos absorver e assimilar o universo e os eventos da trama.
O próprio Miyazaki, em entrevista com o cineasta Roger Ebert em 2002, comenta como essa estratégia de entulhar filmes infantis, muito presentes em produções hollywoodianas, pode também ser auto sabotadora: “As pessoas que fazem filmes têm medo do silêncio, […] ficam preocupadas que o público fique com tédio, que saiam da sala de cinema para buscar mais pipoca. Mas só porque o filme é 80 por cento intenso, não significa que as crianças vão te abençoar com sua concentração. O que realmente importa são as emoções subjacentes – nunca as deixe para trás.”
E A Viagem de Chihiro está recheado desses retratos. Cenas em que Chihiro está comendo com Lin enquanto observa o luar, em que ela faz uma viagem de trem com Sem Rosto, observando silenciosamente os passageiros fantasmas gradativamente irem embora até que eles fiquem completamente sós, ou em que ela simplesmente precisa superar o desafio de descer uma longa escada, que no fim demonstra não ser tão difícil assim. O que não significa que não são retratadas situações de ação intensa e movimentação frenética, e sim que esses são equilibrados por momentos de calmaria e respiro.
Contudo, o Ma não se expressa apenas em ambientação ou linguagem, mas também na construção de mundo e na mitologia do filme. Por exemplo, como quando Chihiro passa muito tempo dentro da cidade mágica sem consumir nada de lá, ela começa a gradualmente desaparecer, posicionando-se na limiar entre a existência e a não-existência: um intervalo entre as duas condições, um não-lugar, em que mesmo que ainda possa ser vista, ela perde sua tangibilidade; ou como, não importa o quanto ela se esforce e queira, Chihiro nunca de fato consegue se encaixar na rígida linha de produção que é exigida por Yubaba na casa de banho, ainda que tenha capacidade para tal.
A propósito, a jornada emocional de Chihiro é um dos elementos mais impactantes de sua viagem. O arco da personagem tem como ponto central a busca por identidade, que se personifica no conflito com o nome. Assim que é contratada por Yubaba, Chihiro tem seu nome roubado e substituído por Sen. Haku explica que a bruxa governa seus funcionários roubando seus nomes e, consequentemente, suas autonomias e livre-arbítrio, e que a chave para que a garota consiga encontrar seu caminho para casa é que ela nunca esqueça de seu nome, ou seja, de quem ela é.
Essa questão traduz muito bem a temática de amadurecimento onde o filme circula e os comentários que ele faz a respeito. Todos os elementos da casa de banho representam signos da vida adulta: a ganância e materialismo do Sem Rosto, a obsessão com trabalho de Kamaji, o autoritarismo da própria Yubaba; todas condições que consomem esses personagens e que os privam pouco a pouco de sua humanidade. Personagens como Sem Rosto só desabrocham e se encontram quando se afastam desse ambiente opressivo, e é curioso perceber como Chihiro só consegue sobreviver naquele cenário terrivelmente adulto exatamente porque, conforme ganha confiança e amadurece, ela se mantém fiel às suas convicções e conserva sua essência infantil.
Em alguns aspectos, a filmografia de Hayao Miyazaki remete às abordagens com obras infantis de Dr. Seuss, no sentido de incluir fortes posicionamentos políticos nas suas histórias, trazendo morais que perpassam por pautas como ambientalismo, consumismo e capitalismo, e não é diferente com A Viagem de Chihiro. Da sequência com o espírito do rio poluído, que vai à casa de banho e todos recusam-se em repulsa a atendê-lo, exceto por Chihiro, a única que não o subestima ou o julga pela imagem, até todo o arco dramático do Sem Rosto, mergulhado na ganância, avareza e consumismo, que é desarmado pela ingenuidade da protagonista e posteriormente encontra seu lugar como ajudante de Zeniba, irmã gêmea de Yubaba. A mensagem pode vir mais sutilmente ou de forma mais literal e expositiva – a justificativa para Haku ter sobrevivido no incidente do 2º ato é literalmente ‘o poder do amor’ –, mas sempre acessível e claramente entendível para qualquer criança e espectador atento.
Mas onde o filme realmente brilha é em seus retratos de amizades e relações interpessoais, que Chihiro cultiva por toda a trajetória. Cada personagem carrega uma personalidade única, e Chihiro se conecta com cada um deles de formas distintas e particulares, criando desde novos vínculos com figuras inusitadas que em outras histórias se configurariam como vilões, como com o bebê Bah, filho de Yubaba, e com Sem Rosto, antes hostil porém pouco a pouco demonstrando-se capaz de receber e dar amor, até reencontrando e fortalecendo vínculos antigos, como ocorre com Haku. Suas interações são norteadas com sensibilidade e verossimilhança, como com Kamaji, que a princípio é ranzinza mas por fim passa a ser uma figura paterna para a menina, e com Lin, sua tutora na casa de banho, que cria com ela uma relação forte de companheirismo.
Nos momentos finais de A Viagem de Chihiro, quando a garota finalmente encontra o caminho para casa e se liberta de Yubaba, Haku, enquanto a guia para fora, lhe diz: “não olhe para trás, não até passar pelo túnel”. E é isso que a menina faz. Vai correndo de encontro aos pais, revisita o percurso que a trouxe à casa de banho, percorre o túnel, e a última cena mostra Chihiro, já de frente ao carro, olhando para trás, em silêncio. O intervalo é longo e, enquanto ela reflete sobre sua viagem, nós refletimos junto com ela. Em uma sociedade calcada em opressão, exploração e capital, ser criança é subversão e resistência. Então que, assim como Chihiro, nós possamos trilhar nossas viagens intrépidos e seguros de nós, sem que nunca esqueçamos quem somos, de onde viemos, e o que nos trouxe até aqui em primeiro lugar. Nessa loucura de crescer, que continuemos crianças.