Vitória Lopes Gomez
Chegando à 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo antes mesmo da abertura oficial, A Taça Partida é desconfortável do início ao fim. Na edição que “faz um apanhado do cinema contemporâneo mundial produzido e exibido sob o impacto da pandemia”, o longa chileno dirigido por Esteban Cabezas integra o festival como parte da Competição Novos Diretores. O estreante também participa como produtor e co-roteirista junto de Álvaro Ortega e só precisa de um dia para explorar a incômoda “jornada de teimosia, ego e mágoa de um homem”.
No filme, o homem em questão é Rodrigo (Juan Pablo Miranda). Separado, certo dia ele aparece de surpresa na casa da ex-esposa com a desculpa de ver o filho. Ela não quer deixá-lo entrar, já que o encontro está fora do que foi combinado pelos dois, mas ele a perturba até conseguir. Quando a ex-mulher sai para trabalhar e o pequeno Julián (Román Cabezas) vai para escola, Rodrigo não vai embora e resiste em deixar para trás o que um dia já foi dele.
O desconforto com o protagonista já começa nos minutos iniciais de La Taza Rota, nome original do longa. Rodrigo só avisa a mãe do menino da visita quando está na esquina da casa, observando pela janela. Mesmo que Carla (María Jesús González) repita o ‘não’ – afinal o filho tem aula, ela tem que sair para trabalhar e o encontro não combinado só bagunçaria a rotina de todos-, ele insiste para entrar. Até gritar o nome da criança à porta, para que a mulher não possa negar o pedido diante do menino, ele faz. Mais adiante, quando Julián já foi para a escola e o pai fica sozinho na casa, as atitudes infantis de Rodrigo se misturam à mágoa de ter sido deixado para trás.
Ele já sabe que a ex-mulher está em um novo relacionamento, suspeita de que o namorado tenha se mudado para lá e desconfia que os dois planejam se mudar para longe, mas, mesmo que sinta a dor de não ter superado o término, o que desponta é o seu ego ferido. Sem a intenção de ir embora, o intruso toma banho, usa e joga fora os pertences do atual da ex, fuça nos armários e nas roupas, deita e dorme na cama, até convida gente para ir à casa. Ele ainda se defende: ele só queria estar com o filho, justo, certo? Corta para Rodrigo sozinho e ele inventa desculpas para desmarcar o passeio com Julián, uma deixa para passarem mais tempo lá.
A Taça Partida se passa, na maior parte do tempo, na casa da ex de Rodrigo. À medida que ele passeia pelos cômodos e explora aquele ambiente, a sensação é de aflição, como se testemunhássemos uma invasão de privacidade. Logo em sua estreia, o diretor imprime todo o desconforto provocado ao assistirmos o protagonista simplesmente existir naquele espaço. Além de intruso, Rodrigo, que claramente não superou a separação e reluta ao ver sua ex-mulher em um relacionamento maduro e saudável, sente a necessidade de se auto-afirmar perante o novo namorado de Carla, até mesmo em frente ao filho dos dois.
Se a casa é o local que o ego ferido de Rodrigo se materializa, o diretor reforça a importância da locação: a câmera estática de Cabezas filma o ambiente em planos gerais, segurando os quadros mesmo quando os personagens não estão mais em cena. A fotografia e o tratamento de cor do cinematógrafo Cristián Petit-Laurent, com tons frios, quase mórbidos, potencializam a inquietude e destacam a frieza da residência – afinal, Rodrigo não é mais bem-vindo ali.
Ao final, quando Carla e o namorado voltam e o protagonista ainda está lá, ele, que à princípio só queria ver o filho, acaba magoando a criança com sua própria mesquinhez, desconfortável ao longo dos oitenta minutos de duração. E quando não poderia ficar mais incômodo, o ex-casal engata em uma discussão e Rodrigo justifica seus erros com “eu ainda estava amadurecendo”. A teimosia e a mágoa existem, mas A Taça Partida triunfa mesmo é em desmascarar o ego ferido de um homem.