Ana Laura Ferreira
É na diferença entre o ‘ter’ e o ‘querer’ que se constrói a narrativa de 1986. O filme alemão, que fez sua estreia sul-americana na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, se destaca por sua sensibilidade ao tratar da melancolia e das reminiscências do acidente nuclear de Chernobyl. Concentrando-se nas repercussões emocionais e nas marcas que o desastre deixou naqueles que vivem próximos a zona radioativa, o filme tece sua trama na união do passado, do presente e da memória.
Dirigido e roteirizado por Lothar Herzog, acompanhamos a trajetória da estudante universitária Elena (Daria Mureeva) que tenta dar continuidade aos negócios ilegais do pai, agora preso. Cercada pelos perigos da nova atividade, pelas pressões do início da vida adulta e por conflitos amorosos, a narrativa nos prende em meio ao caos claustrofóbico que é a vida de Lena. Tudo ganha uma amplitude ainda maior pela sensação apocalíptica que ronda o longa, graças as sua proximidade à “zona proibida”.
A paleta azul acinzentada e verde, que toma conta de 1986, intensifica o sentimento de melancolia externado por Daria. Sua atuação emocionalmente contida se complementa aos diálogos minimalistas e a fotografia contemplativa que instigam a percepção de angústia e aflição, como se a qualquer minuto tudo fosse desabar. A tensão que perpassa a narrativa desenvolve o contraste entre o presente e a memória.
Recheado de flashbacks, as lembranças – que parecem desconexas num primeiro instante – nos ajudam a penetrar fundo nos sentimentos e personalidade de Lena. Aliado à progressão cronológica subjetiva, o longa rápidamente nos ata à protagonista enquanto acompanhamos sua linha de pensamento e desenvolvimento emocional em meio a perturbação. Movimento esse que se intensifica com os secos cortes de câmera e as abruptas mudanças sonoras.
Mesmo 30 anos após o acidente nuclear de Chernobyl, o longa se atenta a deixar pistas, sensações e pequenos indicativos de como o ocorrido ainda influencia a família de Elena. Se apoiando nos desdobramentos biológicos, o filme torna-se quase que auto explicativo ao introduzir a cena dos troncos da árvore, se apegando a metáfora da contaminação radioativa presente nas relações que circundam a personagem de Daria. O olhar romântico e delicado ao inóspito, por outro lado, faz crescer a percepção de pureza do ambiente natural que compõe o cenário.
1986 desenvolve em seus 77 minutos mais do que uma simples narrativa, ele se atém à propagação das relações humanas e as circunstâncias imutáveis às quais somos submetidos. Filosoficamente falando, o longa pode ser definido como um símbolo da convivência familiar. Desta forma, 1986 é sobre se perder e se encontrar, atender a expectativa de terceiros e trilhar seu próprio caminho, é sobre sofrer as consequências de escolhas que não fez e, acima de tudo, lidar com suas cicatrizes.