Gabriel Leite Ferreira
“Shaolin shadowboxing and the Wu-Tang swordstyle. If what you say is true, the Shaolin and the Wu-Tang could be dangerous. Do you think your Wu-Tang sword can defeat me? / En garde, I’ll let you try my Wu-Tang style.” Assim começa “Bring da Ruckus”, primeira faixa do lendário Enter the Wu-Tang: 36 Chambers, disco de estreia do Wu-Tang Clan que completou 25 anos na sexta passada. Samples de filmes de artes marciais dos anos 50 e 60 em um disco da costa leste durante a franca ascensão do gangsta rap? Baixe a guarda…
“Vários ‘tão correndo pelo mal / Já perderam a trajetória do seu trecho / Uns comprando só riso, porque tem preço / Uns criando só riso, porque tem preço.” Assim começa “7 P.M. In Mariana”, primeira faixa de Subliminar, o segundo disco cheio de MC Igu lançado em fevereiro de 2018. Sexo, lean, bala, doce e ostentação? Também, mas não só; o maior disco de rap do ano abrir com um “trap de mensagem” já é mais que suficiente para apurar os ouvidos…
“Sugee dame koregame” (“É difícil detê-lo”), canta ele na melhor estileira mumble rapper na posse cut “Sugee”, com os comparsas Klyn, Dfideliz, THE BOY, Jé Santiago e Derek, todos da Recayd Mob. O beat, um sample grudento de instrumento de corda japonês (um sanshin, um shamisen ou um biwa?) em cima de um trap pesado mas suave (paradoxo?), produção do próprio Igu. As letras são aquele braggadocio clássico: “Ela te beija depois de me fazer um boquete / Tô na facul e você nem saiu da creche / Meu trap é crack que até sua mãe me pede / Meu cabelo tu copia, bostinha me persegue”, manda Klyn, e é impossível levá-lo a sério – e nem é esse o objetivo.
O rap aqui é zueiro. Entre os milhares de exemplos do Wu-Tang, o mais escatológico talvez seja “Me queima, eu entro na merda, eu saio dela igual diarreia / Me queimei uma vez mas era só gonorreia / Sujo, eu deixo cuecas manchadas de merda nas minhas gavetas / Pra poder ficar fedido pra você”, cortesia do genial Ol’ Dirty Bastard na curta e grossa “Shame on a Nigga.”
Não é por acaso que Igor Kuwahara dispara o simbólico “Meu verso no RapBox foi lendário, men / Tipo Wu-Tang, junto é mais refém” em “8 Bit”, talvez exemplar único do “nintendo-trap.” Além das punchlines certeiras, as batidas altamente originais também devem muito às produções minimalistas de RZA no clássico de 1993.
Segundo o Genius, a supracitada “Bring da Ruckus” foi diretamente remasterizada da fita demo do noneto, e parece muito provável. A faixa não é o que se esperaria de um álbum de rap dos anos 90. Não há nada da polidez sensual do Dr. Dre ou da densidade a la Racionais MC’s do Mobb Deep; em vez disso, uma batida pesada e seca acompanhada apenas por barulhos inusitados e a pronúncia agressiva dos MCs. É mais do que suficiente. As camadas da canção vão sendo construídas lentamente, e, ao final dos 4 minutos, não há qualquer dúvida sobre o poder de fogo do Wu-Tang Clan. Uma das melhores aberturas de todos os tempos!
36 Chambers mantém a simplicidade no centro de sua estética. O foco aqui são as rimas, e isso os MCs tem de sobra. Em praticamente todas as canções o ouvinte se sente em uma daquelas tradicionais batalhas de rap, um rapper disparando ofensas pro outro praticamente sem pausa; em “Shame on a Nigga”, Ol’ Dirty Bastard chega a deixar o refrão pela metade para dar lugar a Raekwon. Isso quando há refrão: “Wu-Tang: 7th Chamber” e “Protect Ya Neck”, duas das posse cuts mais ameaçadoras já feitas, não tem nada além dos beats crus para situar rappers e ouvintes. Nada mais justo – ouvir Raekwon, Ghostface Killah, GZA, RZA, Ol’ Dirty Bastard, Masta Killa, Inspectah Deck e U-God dividindo, ou melhor, disputando o microfone é entretenimento da melhor qualidade.
Se é possível comparar a estreia do Wu a algum outro disco da época, citaria The Low End Theory, do A Tribe Called Quest. As propostas são distintas – a característica principal do A Tribe era a mensagem de paz, união e positividade em beats jazz, enquanto o Wu se portava como uma gangue pronta para tomar a indústria musical de assalto -, mas ambos usavam o humor como aspecto essencial.
No caso do Wu, a estética da gangue fã de kung fu era só pose, nada mais que isso. NWA, Tupac e Notorious B.I.G também estetizavam o estilo de vida gangster, mas o faziam de maneira séria, sem espaço para piadas envolvendo excrementos ou skits sobre métodos de tortura cartunescos como o de “Method Man”. Eis o grande trunfo do Wu: subverter a lógica do gangsta rap em um produto cativante, ocasionalmente acessível e tão ou mais pesado que Straight Outta Compton, All Eyez on Me e Ready to Die.
Igu leva essa cartunização a níveis ainda mais altos. Suas letras são simples e curtas, servindo mais de complemento dos beats do que versos bem acabados em si mesmos. O refrão de “G-Quan III”, por exemplo: “Sem stress, yeah, mec tipo Jackie Chan / Sem stress, yeah, Igu é flow Tenshinhan.” As rimas são sempre fáceis, e isso, ao contrário do que se possa pensar, é uma qualidade e tanto quando o aspecto mais forte do MC é o delivery. Ninguém canta como Igu, ponto. Ele faz releituras excêntricas dos sotaques gringos simplificando palavras (nem que para isso seja preciso cortar sílabas), ao mesmo tempo em que segura um flow ágil. Chega a ser relaxante de ouvir.
Retomando o refrão de “G-Quan III”, temos um elemento primordial presente em ambos discos: as referências infantis. G’Quan é o nome de um livro presente na série Babylon 5, Jackie Chan é o famoso ator de filmes de kung fu e Tenshinhan é um dos vilões de Dragon Ball. Junte isso às capas dos singles, aos samples recorrentes de animes, até mesmo a canções de new metal (“Chelsea Grin”), e o resultado é um som altamente nostálgico, mas não por isso menos vanguardista.
Entre as 17 faixas de Subliminar, o maior destaque é o trap funk “Ferrari Black” em parceria com MC Ligeirinho. A princípio a faixa pouco difere da sonoridade clássica de Igu, a não ser pelo flow melódico de Ligeirinho. Eis que, no meio do primeiro verso, o grave do trap dá lugar a um clássico tamborzão – se isso não é música experimental, nada mais é. Seria coincidência que o produtor WC no Beat lançou 18K, álbum focado na junção entre funk e trap, um mês depois do disco de Igu?
Memórias de infância também tem lugar em 36 Chambers, mas com contornos muito mais sombrios. “Can It Be All So Simple”, quinta faixa, tem Raekwon e Ghostface Killah versando sobre o passado duro (“Meu pai era um viciado desde os 16 / Injetando aquela merda na sua corrente sanguínea”) e o presente promissor (“Chutando os clichês, fazendo duetos com Rae e A / Isso faz meu dia”) em cima de um beat mais melódico do que as produções clássicas de RZA. O verso final da canção (“O brilho do sol faz a maior parte do dia / Paz à Humanidade, Ghostface carrega uma nove milímetros preta”) é um dos mais profundos do rap, ainda mais quando oposto à entrevista com Method Man que vem em sequência, em que ele explica todos os codinomes do Wu-Tang Clan.
No clássico absoluto “C.R.E.A.M” essa fórmula se repete, mas com uma batida psicodélica. Aqui, Raekwon e Inspectah Deck abrem seus corações, sem pieguismo. Rae começa falando sobre seu primeiro contato com as drogas e o crime aos 16 anos e sua posterior redenção: “Percebi que tinha ido pela rota errada / Então me juntei a uma gangue massa e fui pra fora.” Inspectah não se mostra tão otimista quanto seu companheiro: “Eu ainda tô deprimido, então pergunto: de que vale tudo isso? / Pronto para desistir, então eu procuro a antiga Terra / Que explicou que trabalhar duro pode te ajudar a continuar / A aprender a superar as angústias e a dor.” O título da canção – “Cash Rules Everything Around Me”, isto é, dinheiro muda tudo ao meu redor – dá um tom ainda mais sombrio, e serve de denúncia e subversão do estilo de vida gangsta que estava no auge à época.
Mas a epítome do Wu são os momentos de batalha de rima sem concessões, que rendem uma variedade insana de flows e dão vazão a uma agressividade análoga ao punk rock. E dentre esses momentos nenhum supera “Da Mystery of Chessboxin”, séria candidata a melhor rap de todos os tempos. O minimalismo da base em conjunto com os seis MCs diferentes em uma faixa de menos de 5 minutos sem refrão é de uma peculiaridade imensa. Sem falar no clipe, com uma legião de homens uniformizados e encapuzados em um tabuleiro de xadrez gigante (GZA e RZA são entusiastas do esporte). Tão icônico quanto o clipe de “Smells Like Teen Spirit”, lançado um ano antes.
Para continuar nas analogias com o rock, o legado de Enter The Wu-Tang (36 Chambers) é tão endeusado quanto o de Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, dos Beatles (ou o de Nevermind). O Wu mostrou que havia vida fora da ostentação e da violência glamourizada, que era possível ser um rapper bem-humorado sem deixar de ser crítico e pesado. Essa postura iconoclasta foi a escola de gente como MF DOOM, Kanye West, Lil Ugly Mane, MC Igu e tantos outros rappers que desafiaram e desafiam os estereótipos do gênero. Por isso o Wu-Tang segue atemporal, mesmo sem nunca mais ter repetido o impacto brutal de sua estreia.
É difícil analisar a importância de MC Igu, uma vez que é um artista em ascensão numa época especialmente líquida. Porém, é consenso que o rapper de Itapetininga já tem um nicho próprio na cena: não há praticamente ninguém que rivalize com ele nos quesitos originalidade e produtividade (ele posta singles novos no YouTube quase toda semana). Raffa Moreira compete de igual pra igual com ele nesses aspectos, mas também possui um nicho individual.
Esse texto não busca colocar Wu e Igu no mesmo patamar, antes analisar o trabalho de um MC recente a partir da ótica de um nome consagrado do rap. O resultado disso? Parafraseando uma faixa de 36 Chambers: não mexam com o rap ‘asiático’!!!