Expresso do Amanhã: série retorna com distopia moderna e conserta furos do passado 

Em uma discussão sobre direitos básicos, a série apresenta diversos momentos de tensão (Foto: Reprodução)

Letícia Machado

Adaptado da graphic novel de 1982, Le Transperceneige de Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette, não é a primeira vez que O Expresso do Amanhã, ou Snowpiercer, ganha uma adaptação audiovisualBaseado no filme de mesmo nome, com direção de Bong Joon-ho (Parasita) – vencedor do Oscar de Melhor Diretor e Melhor Filme –, a história se passa em um mundo pós-apocalíptico, onde após um experimento falhar na tentativa de conter o aquecimento global, a humanidade é praticamente extinta em um congelamento massivo do globo terrestre. 

Nesta realidade, algumas pessoas são salvas graças à uma espécie de trem-arca, desenvolvido para rodar o planeta eternamente. Mas nem tudo lá dentro é um conto de fadas pois a população mais rica vive no luxo da primeira classe, enquanto os pobres são realocados nos vagões traseiros e quanto mais ao fundo, menos direitos eles possuem.

O Snowpiercer, trem projetado pelo Sr. Wilford com 1001 vagões, carrega os últimos humanos do planeta Terra (Gif: Reprodução Netflix)

Se você já assistiu o filme de 2013 que se tornou um cult contemporâneo, não se engane pelo enredo que ele traz. Estrelado por grandes nomes como Chris Evans (Capitão América), Song Kang-ho (Parasita), Tilda Swinton (Suspiria) e John Hurt (O Homem Elefante), o filme aclamado pela crítica aborda questões semelhantes, mas nada idênticas com a série produzida pela TNT e distribuída pela Netflix.

Uma das grandes diferenças da produção é a de que, desta vez, não existe o conflito de interesses entre Bong Joon-ho e Harvey Weinstein, ex-produtor de filmes e criminoso sexual, que na época produziu o filme e planejou eliminar mais de 25 minutos do longa. Agora Joon-ho é produtor-executivo e o canadense Graeme Manson (Orphan Black), o showrunner. Se aproximando pouco da graphic novel de 1987, a série introduz um trem mais subdividido, com uma estética minimalista e moderna, que adapta cada classe com o estilo de seus moradores.

A primeira ostenta espaço e o luxo dos mais ricos, a segunda possui características neutras com os militares, cientistas e agricultores. A terceira é tumultuada e abriga os operários, e o fundo é escuro, sem espaço e sujo com os invasores. Estes dois últimos vagões representam 70% da população do trem. Essa realidade não parece tão utópica quando paramos para pensar que na vida real apenas 1% da população global detêm o mesmo valor que os outros 99%, ou então que 52 milhões de brasileiros ainda vivem abaixo da linha da pobreza.

Graeme Manson e Bong Joon-ho trabalham juntos na produção (Foto: Reprodução)

Desta vez, vemos o ex-detetive Andre Layton interpretado por Daveed Diggs (Blindspotting) como um “fundista” (morador do fundo do trem), que lidera e cria estratégias para uma revolução. Quando um assassinato ocorre na terceira classe, a secretária Melanie Cavill (Jennifer Connelly) decide trazer Layton para solucionar o caso, e é a partir daí que a série se desenrola.

A inserção de um crime deixou a história mais coerente, pois enquanto no filme os fundistas presos há 17 anos nos vagões traseiros elaboram uma revolução às cegas, na série Andre Layton usa seu passaporte para a frente como uma forma de reconhecer o território e formar aliados. O filme carece de explicações básicas, por exemplo, como os fundistas foram parar ali, como funcionava transporte entre os 1001 vagões, e qual seria o destino dos passageiros após a revolução. A série não apenas responde, mas também complementa com novos ganchos. 

Outra modificação interessante foi a diversidade, que desta vez embarcou na produção com um elenco etnicamente variado, que fez mais sentido por se tratar de toda a população mundial. A primeira versão era composta por personagens majoritariamente brancos e padrões, com duas ou três exceções. Além disso, a série deu espaço para explicações durante diálogos e flashbacks da vida na terra antiga que possibilitaram a construção da personalidade das personagens. 

O protagonista da série, Andre Layton, possui uma personalidade diferente de Curtis, protagonista do filme, que funciona bem com o novo estilo da narrativa (Foto: Divulgação TNT)

Quem se interessou pelo filme O Poço (2020) pode encontrar na série, metáforas semelhantes, só que desta vez, no sentido horizontal. A história é atual, aborda luta de classes, sistema prisional e golpes de estado, sem apresentar muita subjetividade, entregando de graça ao espectador que só precisa ligar 1 + 1 para associar com situações da vida real. 

Diferente de outras distopias como Jogos Vorazes (2012), que desenvolve aos poucos alegorias da realidade, as chances do público se sentir representado por um fundista revolucionário é grande, visto que revoluções regadas à destituição de tronos, cortes de cabeça e impeachments também já aconteceram na vida real. Outras questões importantes também se aproximam de quem assiste, como as consequências de problemas ambientais e a presença de figuras de autoridade que cegamente obedecem a imagem fabricada de um líder.

De graça, mesmo que não proposital, a série ainda une tudo em uma condição de pessoas que precisam ficar isoladas do mundo exterior para perpetuarem sua sobrevivência. O último episódio da primeira temporada, que foi ao ar em 12 de julho de 2020, deixou questionamentos sobre o possível destino da Locomotiva Eterna. O retorno ainda não tem previsão exata, mas o trailer da 2ª temporada deixou o gostinho do que está por vir.

 

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