Ao fim de Chegamos Sozinhos em Casa, Tuyo encontra lar no outro

Texto alternativo: Capa do CD “Chegamos Sozinhos em Casa”, da banda Tuyo. Fotografia quadrada e colorida. Nela, vemos três pessoas em frente a um grande rancho, com telhados marrom e pintura branca. O céu é limpo e azul, e eles se apresentam em pé, num gramado verde-escuro. Os três olham para a câmera, com um semblante sério. Primeiro, à esquerda, está Jean. Um homem negro, de barba cheia, com cabelos crespos da cor preta, raspados nas laterais e com um grande volume no topo, que se divide em dois. Ele veste um sobretudo azul escuro, uma camiseta branca, uma calça azul-escuro e tênis brancos. Ao seu lado, no centro, está Lay. Uma mulher negra, de cabelos crespos raspados e tingidos em loiro. Ela veste uma espécie de quimono azul-escuro, com grandes ombreiras nos braços, e com uma saia que se estende apenas até as coxas. Além disso, ela também veste meias de cano longo brancas e tênis brancos. Por fim, ao lado direito, está Lio. Uma mulher negra, de cabelos crespos volumosos da cor preta. Ela veste um grande vestido azul-escuro de mangas longas, que se estende até seus pés, e que se divide no meio em botões fechados. Nos pés, ela também usa tênis brancos.
Depois dos magnânimos Pra Doer (2017) e Pra Curar (2018), Tuyo retorna com um projeto extraordinário, cuja ousadia foi contemplada por uma indicação ao Grammy Latino de 2021 [Foto: Tuyo]
Enrico Souto

Não há medo mais apavorante do que o da solidão. Construímos nosso entendimento de mundo baseado em nossas conexões afetivas e, logo com a chegada da vida adulta, nos deparamos com a instância de trilhar um caminho tortuoso por conta própria. Nesse temor pelo desconhecido e por não pertencer, Machado, Lay e Lio – ou Tuyo, como os conhecemos juntos – encheram sua casa de gente, para não se sentirem sozinhos. Diante disso, Chegamos Sozinhos em Casa, o novo projeto artístico da banda, imerge na psique de seus integrantes, explorando o instante em que essas pessoas voltam para onde vieram, ou criam seus novos espaços, e o que sobra da gente quando, enfim, estamos sós. 

Chegamos Sozinhos em Casa é uma aposta ambiciosa por parte da Tuyo, que distingue-se de qualquer coisa que já fizeram, ainda que continue respirando a personalidade artística que os formaram até o presente. Um projeto transmidiático, construído no entorno de quase dois anos, e lançado pelo período de pelo menos um semestre. Consistindo em dois álbuns, que se unem em uma versão Deluxe de 19 faixas, lançada em conjunto com Chegamos Sozinhos em Casa – Fragmentos, uma série documental de oito episódios publicada no YouTube. Havia muita história para ser contada, e não é de se surpreender que a banda, que jamais poderia ser reduzida a um nicho musical, chamou a atenção no mundo inteiro. O ápice disso foi em setembro deste ano, quando eles receberam sua primeira indicação ao Grammy Latino, pelo Volume 1 do disco, em Melhor Álbum de Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa.

Texto alternativo: Imagem de divulgação do Volume 1 do álbum “Chegamos Sozinhos em Casa”, da banda Tuyo. Nela, vemos três pessoas presentes em uma sala fechada, iluminada por uma luz difusa, com vários quadros pela parede e um grande sofá azul no centro. Os três olham para a câmera, sérios. Primeiro, à esquerda, está Jean. Um homem negro, de barba por fazer, com cabelos crespos, raspados nas laterais e com um grande volume no topo, tingidos em loiro. Ele usa brincos prateados nas orelhas, veste uma jaqueta azul-escuro, uma calça azul-escuro e, nos pés, meias brancas de cano longo e um tênis branco. Ele senta na ponta esquerda do sofá, com as pernas cruzadas e as mãos sobre a coxa. Também sentada no sofá, à direita, está Lio. Uma mulher negra, com cabelos escuros trançados em longas box-braids com mechas da cor bege. Ela veste um grande vestido azul-escuro de mangas longas, que se estende até seus pés, e que se divide no meio em um botão fechado. Nos pés, ela veste tênis brancos, e apoia seus braços no sofá, o esquerdo no encosto, e o direito no meio do móvel. Por fim, no meio deles, posicionada atrás do sofá, está Lay. Uma mulher negra, com cabelos raspados tingidos em roxo. Ela veste um blazer azul-escuro, preso em sua cintura por um laço da mesma cor. Ela também usa um top azul-escuro no dorso, e apoia os dois braços sobre o sofá.
Além disso, a Tuyo também angariou uma indicação no Prêmio Multishow 2021 pela música Sonho da Lay, na categoria Canção do Ano, acurada pelo Superjúri do evento (Foto: Juh Almeida)

Performances em eventos estrangeiros, reconhecimento em grandes veículos da imprensa internacional, indicações em premiações enormes; Tuyo já é pop, furou a bolha da cena independente, e agora passa a ocupar espaços que não poderia alcançar antes. Porém, ao mesmo tempo que se permitem celebrar tais conquistas, elas não são fáceis de lidar para os membros da banda. “[Eu tenho a impressão que] nenhum de nós, nem os nossos iguais, foram autorizados por alguém”, diz Lio, no primeiro episódio da série Fragmentos. “Parece que tinha uma parte da cerca que estava aberta, e a gente começou a passar”. E isso torna-se evidente quando, por exemplo, percebe-se que, na categoria em que foram indicados no Latin Grammy Awards, Lio, Lay e Machado são os únicos artistas pretos.

Devido a isso, o álbum passa, em várias ocasiões, por um lugar de questionamento e hesitação, do receio que dele surge, na necessidade de confrontar um trajeto ainda inaugural e o seu destino final. Neste caso, trata-se da individualidade, do olhar para dentro, que, para a Tuyo, também é uma vivência muito nova. Usufruir da solidão e do prazer de estar só é um privilégio e uma condição elitizada. Afinal, para quem precisa constantemente se preocupar em sobreviver, pouco espaço sobra para pensar sobre o que isso significa. Nesse sentido, Chegamos Sozinhos em Casa reflete sobre o momento em que, após muita construção, essa experiência passa a atravessá-los, e como ela os afeta, eles vindo de onde vieram.

É curioso, portanto, que um projeto que comenta tanto sobre um processo individual e particular também seja o primeiro que a banda compõe em conjunto, em um espaço compartilhado, ao invés de seus discos anteriores, em que as faixas nasciam a partir de construções mais individualizadas. O resultado disso é um processo que nasce de fora para dentro. Uma produção coletiva, mas que, por fim, se reduz a um estudo íntimo e um mergulho nas singularidades de cada uma das partes que compõem o que conhecemos como Tuyo. Cria-se um processo de desvencilhamento, para que, finalmente, eles possam se reencontrar em seu estado cru e pleno.

Posto isso, Fragmentos se torna uma ferramenta de enriquecimento desse processo. A série documental apresenta diferentes interpretações de Chegamos Sozinhos em Casa. Primeiro, sobre o conceito geral do disco e, mais tarde, sobre canções específicas. Contudo, de jeito algum eles pretendem explicar sua obra e restringi-la a apenas uma leitura. Pelo contrário, os três constroem identidades únicas, separadas uns dos outros, e trazem suas perspectivas individuais sobre o trabalho, que se chocam e entram em divergência o tempo todo. E eles estão cientes disso. Não só cientes, como também prezam por essa dissonância. 

“Tá tudo dito lá, dentro do disco. Mas às vezes as pessoas querem entender os desdobramentos das metáforas, porque hoje parece que não basta a metáfora. Ou talvez ela nunca tenha bastado.”

– Lio

Isso se comprova na tracklist quando, apesar de partirem de uma composição coletiva, várias músicas irão focar em vivências e relatos próprios de cada um dos integrantes. Vitória Vila Velha trata sobre a cidade natal de Machado e a saudades que ele guarda daquelas memórias, e O Que Você Diria Agora comenta o ressentimento e a raiva que ele construiu pelo pai. Pronta Pra Cair e Turvo versam sobre a autoestima da Lay, e como isso reverbera em sua autoimagem, ganhando camadas ainda mais profundas e multiformes em Fragmentos. Enquanto O Jeito É Ir Embora e Tem Dias abordam experiências muito pessoais de Lio sobre amor e desvencilhamento, em suas mais variadas formas.

Texto alternativo: Capa do primeiro episódio da série documental “Chegamos Sozinhos em Casa - Fragmentos”, da banda Tuyo. Fotografia retangular e colorida. Nela, vemos três pessoas em pé, atrás de um carro azul. As três olham seriamente para a câmera. Primeiro, do lado esquerdo, está Lio. Uma mulher negra, de cabelos crespos volumosos da cor preta. Ela veste um grande vestido azul-escuro de mangas longas, que se estende até seus pés, e que se divide no meio em botões fechados. Ela se apoia no capô do carro pelo cotovelo direito. Do lado dela, no centro, está Jean. Um homem negro, de barba cheia, com cabelos crespos da cor preta, raspados nas laterais e com um grande volume no topo, que se divide em dois. Ele veste um sobretudo azul escuro, uma camiseta branca e uma calça azul-escuro. Além disso, ele também usa um brinco prateado na orelha direita. Por fim, do lado direito, está Lay. Uma mulher negra, de cabelos crespos raspados e tingidos em loiro. Ela veste uma espécie de quimono azul-escuro, com grandes ombreiras nos braços, e com uma saia que se estende apenas até as coxas. Além disso, ela também veste meias de cano longo brancas e se apoia no capô do carro com sua mão direita. O fundo é o de uma floresta com várias árvores, e o cenário é dia.
As canções em que Machado canta continuam marcando presença, mais memoráveis do que nunca, incluindo a faixa-título do projeto, o ápice emocional do final do disco (Foto: Vitor Augusto/Petrobras Cultural)

Acompanhamos o trajeto emocional de Tuyo. Porém, o que encontra-se no final dessa estrada? Eles chegam aonde? Para quem foi definido a vida inteira por uma falta de identidade, pelo não-pertencimento, esse lugar não existe. A alternativa, nesse caso, é munir-se dessa designação, ressignificá-la e torná-la tangível. Aqui, Tuyo transforma o não-lugar em conceito, e se apropria dele como uma identidade totalmente nova. Se lhes foi negado o direito de pertencimento, o que restou a eles foi pavimentar essa estrada do zero.

Um exemplo é Fragmentos, que está na limiar de inúmeros gêneros do audiovisual. É documentário? É drama? É performance ao vivo? A série não se preocupa em definir isso, e a direção de Laís Dantas brinca o tempo todo com os formatos que dispõe. Ora ela irá usar uma proporção de câmera cinematográfica, com planos longos e contemplativos, ora ela irá explorar uma estética nostálgica de videotapes noventistas, com as imagens de bastidores. Não há limites criativos para a produção, o que torna assistí-la uma experiência envolvente e nunca monótona.

Para isso, a banda procura no passado as inspirações e influências que os moldaram no passado, a fim de compreender o presente e vislumbrar o futuro. Toda a discografia do projeto é uma amálgama das referências que formaram a sonoridade do que é hoje sua música. A Tuyo nunca se limitou pelas restrições de um gênero musical específico. Seja folk, jazz, hip-hop, indie ou MPB, eles sempre souberam bem como apanhar os melhores elementos de cada estilo e transformá-los em um som novo, mais próximo de como se enxergam e do que almejam comunicar artisticamente. Então, misturando beats com instrumentos acústicos, Chegamos Sozinhos em Casa extrapola esse experimento estético como nunca antes.

Imagem de bastidores da produção da série documental “Chegamos Sozinhos em Casa - Fragmentos”, da banda Tuyo. Nela, vemos um grupo de cinco pessoas dentro do sótão de madeira no andar de cima de um casarão, durante o dia. Eles se reúnem sentados no chão em roda, com diversos fios e equipamentos musicais no centro. Primeiro, no centro, está Jean. Um homem negro, de cabelos crespos escuros, com as laterais raspadas e volumoso no topo, que veste uma camisa branca. Ele está de costas para a câmera, de maneira que não podemos ver seu rosto, e segura um baixo em mãos. Todos os outros ao seu redor estão virados para a câmera, e riem enquanto olham para ele. Primeiramente, à esquerda da roda, vemos Lucas Romero. Um homem branco, de barba feita, com cabelos curtos tingidos de louro, que veste um suéter azul e uma calça branca. Ele veste óculos de armação redonda no rosto, fones de cabeça nos ouvidos e tem os joelhos apoiados no chão. Depois, seguindo o sentido horário, está Lay. Uma mulher negra de cabelos crespos escuros e raspados. Ela usa dois grandes brincos nas orelhas e um forte batom vermelho nos lábios, vestindo também uma regata branca e uma calça azul-escura. Ela senta no chão, com as duas mãos fechadas e coladas sobre suas coxas. Ao lado dela, também está Lio. Uma mulher negra, com cabelos escuros trançados sobre a raíz de seu couro cabeludo. Ela veste um top branco e um grande saia azul-escura, e se senta sobre o chão, enquanto coloca sua mão esquerda sobre a orelha. E, por fim, ao lado de Lio e Jean, fechando a roda, está Luís Fernando Diogo. Um homem negro, de barba cheia, com cabelos escuros trançados em longos dreads, presos em um coque no topo de sua cabeça. Ele usa fones de cabeça nos ouvidos, vestindo uma blusa branca e calça branca.
“A ideia da série foi muito pautada nessa questão do espetáculo, de como é que a gente consegue replicar, de alguma forma, um pouco do que sentimos quando tá ao vivo”, diz Lio, a respeito de Chegamos Sozinhos em Casa – Fragmentos (Foto: Vitor Augusto/Petrobras Cultural)

Em diversos momentos, parece haver um exercício ativo da banda de sair da sua zona de conforto. É o caso de Sonho da Lay, um dos singles de divulgação do Volume 1. Trata-se de uma viagem cinematográfica entre os devaneios emergidos na mente de Lay, refletindo sua inquietude e vontade de desaparecer. A estrutura da faixa é de uma legítima música eletrônica, com uma construção de ambiente minuciosa no verso, para então elevar-se à uma grande catarse instrumental. É uma faixa marcante, com uma identidade própria, totalmente diferente de tudo que a Tuyo já fez, mas que ainda carrega em si a essência do trio. Já entre as referências que citam terem sido cruciais para a concepção do disco, estão Marília Mendonça, Kamasi, The Internet, Linkin Park, Kirk Franklin e outros artistas que, à primeira vista, jamais poderiam ser fundidos. 

Além disso, essas inspirações ultrapassam o plano das ideias e se manifestam nas colaborações vocais, que não eram do feitio da banda em projetos solo. Desde os versos melodiosos e envolventes de Luccas Carlos, Lenine e Drik Barbosa, os backing vocals leves, mas poderosos de Jaloo e Lucas Silveira – que também é creditado na produção do projeto –, e as rimas fortes e contundentes da lenda Kamau, até os arranjos únicos que RDD, Jonathan Ferr e Shuna (da Yoùn) oferecem, nas respectivas faixas que assinam. Todos são pessoas abertamente presentes na vida dos três integrantes, e os auxiliam a pincelar as arestas de sua Música.

Tuyo também olha para o passado de maneira mais prática. Chegamos Sozinhos em Casa versa sobre os trabalhos passados da banda, reinterpretando sua mensagem. Pra Curar, o exemplo mais explícito, recebe o nome do primeiro disco de estúdio do trio. Porém, ao contrário do que se imaginaria, a música se coloca quase como uma sátira de seu antecessor. Se o álbum de 2018 procura encontrar esperança em um ambiente de dor, compreendendo que o caminho para alcançar a cura não é fácil, a canção de 2021 se posiciona em um contexto catastrófico, de completa desilusão, e abraça essa angústia. O refrão, que repete o mantra “nenhuma dor é pra curar”, atesta o que Lio afirmou para a Rolling Stone, logo depois do lançamento do primeiro volume: “às vezes tem processo que dói e só dói, é dor pela dor mesmo”.

O movimento de revisitação proposto aqui passa, igualmente, por um território metalinguístico. Em todo episódio de Fragmentos, a banda apresenta um setlist diferente das músicas do disco, reinterpretadas e rearranjadas. O primeiro episódio chega com os dois pés na porta, entregando uma versão refrescante das principais faixas de Chegamos Sozinhos em Casa, em uma estética escancaradamente afrofuturista, bebendo do house, dance hall e EDM no melhor estilo KAYTRANADA. Outros episódios também retomam momentos anteriores da carreira da Tuyo, como no sétimo, quando eles performam as canções inolvidáveis da Simonami, projeto musical anterior que Lay, Lio e Machado fizeram parte, ou no sexto, em que o trio interpreta remixes de algumas de suas músicas, dando outra cara a elas e uma autenticidade ímpar.

Compreender o lançamento dividido em dois volumes também é fundamental para assimilar o que aspira o projeto. “O primeiro volume está condensando uma demarcação bastante territorial. A gente abre o disco falando de memória, de origem, com ‘Vitória Vila Velha’, cidade natal do Machado. E, seguimos falando sobre retornos, partidas, chegadas, reencontros… o segundo volume concentra um outro aspecto menos pragmático desses ritos contemporâneos”, comenta a banda, em entrevista para o site Nação da Música. Mesmo que ambos os volumes se oponham e inclusive se contentem sozinhos, quando se unem, alcançam a proporção exata que esse trabalho pedia.

Visto isso, em questão de temática, Chegamos Sozinhos em Casa é repleto de contrastes. O exemplar mais forte musicalmente são as duas colaborações de Jonathan Ferr no álbum. Ambas finalizam os dois volumes e são essencialmente instrumentais. Ao passo que Toda Vez Que Eu Chego Em Casa é de longe a mais longa da tracklist, introduzindo pacientemente cada um de seus elementos e transmitindo uma energia lúdica e doce, Pouco Espaço exala uma sensação constante de claustrofobia. Ela é frenética, urgente, e grita uma necessidade de se libertar, ainda que essas amarras não tenham uma definição clara.

Essa oposição também se manifesta em nível emocional. Ao relatar seu processo agridoce de amadurecimento, a Tuyo não tem medo de expor essas emoções da maneira mais sincera e verdadeira possível, seja em suas boas ou más fases. Se Tem Dias e Do Lado de Dentro compreendem uma perspectiva mais positiva, reafirmando o amor e o autoamor, e entendendo como tal amor molda nossa percepção do outro, Abismo – faixa extra da versão Deluxe –, Fracasso e Hoje Eu Quero Chorar aceitam a melancolia, se fundem à dor e a assumem como parte de si. O projeto nunca confina esses pontos de vista em ideias superficiais de bem e mal, apenas os entende como sentimentos complexos e parte de um processo que muitas vezes vai muito além da nossa compreensão.

Imagem retirada do videoclipe da música “O Jeito É Ir Embora”, da banda Tuyo. Fotografia retangular e preto e branco. Nela, vemos três pessoas rodeando um carro rústico, enquanto olham sérios para a câmera. Primeiro, apoiando seu braço sobre o capô, está Lio. Uma mulher negra, com cabelos trançados em longas box braids escuras, vestindo um largo macacão e saltos brancos nos pés. Ao seu lado, apoiando um dos braços sobre a porta aberta do carro e o outro sobre o teto, está Lay. Uma mulher negra, com cabelos curtos tingidos de uma cor clara, vestindo uma camisa de botões com manga curta, uma calça escura e tênis brancos. Por fim, ao lado dela, agachado sobre suas pernas, está Jean. Um homem negro, de barba cheia e cabelos crespos escuros, raspados nas laterais, e com um grande volume no topo, divido ao meio. Ele tem brincos de argola nas orelhas e veste uma camisa branca, uma bermuda clara e tênis brancos nos pés. Além disso, ele ainda usa um moletom escuro preso no seu torso pelas mangas longas, cruzando do seu torso até seu ombro. O cenário é uma rua arborizada, com muros pichados e árvores crescendo sobre o chão de concreto.
Diferente do que se esperaria de uma colaboração com Lenine, Fracasso é um R&B denso com retoques de trap, evidenciando também o interesse da banda em tirar seus colaboradores de sua zona de conforto (Foto: Felipe Mazzucatto)

O contraste nasce não só na ambiguidade do sentir, mas também na necessidade de se diferenciar do outro. Lio aborda isso mais assertivamente no quarto episódio de Fragmentos: “Parece que, não importa o que a gente tava escrevendo, a gente tava falando sobre isso. Sobre a vontade de desenhar na gente um contraste entre nós e o que acontecia ao nosso redor”. O apogeu disso é Turvo, provavelmente a peça de maior impacto de Chegamos Sozinhos em Casa. O ‘turvo’ do título parece se referir ao momento em que você cria uma dependência tão grande sobre quem te rodeia, que o limite entre o ‘ego’ e o ‘outro’ se confunde, ao ponto de que encontrar o ‘eu’ ali torna-se quase inconcebível. Dessa forma, a faixa – e todo o álbum, em certa medida – retrata o desespero para, nesse cenário, se localizar em si e encontrar autossuficiência.

Chegamos Sozinhos em Casa é sobre várias coisas, e delimitar seus significados é uma tarefa impossível. A própria Tuyo não conseguiu, ainda menos uma crítica como essa. Contudo, no fim das contas, esse é o atestado da grandiosidade do projeto. O trabalho que a banda construiu é mutável, se molda ao prisma de quem ouve e se imortaliza no coração de quem o sente. E isso também afeta a percepção de quem deu vida à obra. Fragmentos narra várias situações em que algum dos três membros tiveram uma epifania sobre o sentido íntimo de uma canção, geralmente despertado por um elemento externo. É o caso de Lay com Turvo, quando uma amiga traz à tona a questão da solidão da mulher negra, alterando completamente a ótica com que ela enxergava a música. E, agora, com essa perspectiva sendo exposta em tela, alterando a nossa também.

Um tópico que sempre foi reforçado pela banda, desde o anúncio do Volume 1, foi a busca por democratizar a sua linguagem e expressão artística. De tornar acessível temáticas densas e difíceis, sem que elas percam sua dimensão e profundidade. E pode-se dizer que, nesse projeto, ela a alcançou. Desta vez, eles partem de uma premissa resoluta – discutir crise de identidade, e o amadurecimento que vêm com a fase adulta – ao mesmo tempo que é hermética e tridimensional. Não abandona seus floreios e lírica poética, mas sempre trata seus temas com firmeza e ternura. A Tuyo já conquistou o coração dos ouvidos que passou, e sua mensagem se expandirá cada vez mais e mais, com a validação de uma premiação internacional – já conhecida pelo histórico problemático de suas decisões – ou não.

De todo modo, pode-se dizer que Chegamos Sozinhos em Casa procura beleza na solidão. Entende que amadurecer implica que certos laços sejam desatados, para que espaços novos sejam abertos. Que é necessária a construção de um espaço particular, para que possamos nos entender como indivíduo único, dotado de autoestima, que se ama e que se basta. Mas também compreende a importância de quem nos acompanha para que esse processo de autoconhecimento ocorra – de quem segura nossas pontas até que possamos levantar voo sozinhos. Para a construção de um vínculo saudável, distinguir-se do outro é primordial, pois é apenas se encontrando que podemos encontrar a quem nos cerca. E é assim que Lio parafraseia Machado, na frase que sintetiza o núcleo emocional do disco: “Eu acredito que a casa onde a gente chegou foi um no outro”.

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