Com banda completa, PJ Harvey salva o rock em São Paulo

PJ Harvey no Popload Festival (imagem: Daniel R. N. Lopes)

Matheus Fernandes e Nilo Vieira

Mais de treze anos separam as duas vindas de Polly Jean Harvey ao Brasil. Em novembro de 2004, promovia Uh Huh Her (seu álbum mais radiofônico) no Tim Festival, acompanhada por um trio de apoio. Na última terça e quarta (14 e 15), a banda de PJ era composta por dez integrantes, mudança ocorrida entre seus últimos discos, Let England Shake (2011) e The Hope Six Demolition Project (2016), que compõe a maior parte do repertório da turnê.
O lirismo confessional entregue em composições cruas deu lugar à instrumentação folk e letras com críticas sociais. Let England Shake critica o país nativo de Harvey, a Inglaterra, e sua participação nas guerras dos anos 2000 sob o comando de Tony Blair, enquanto The Hope Six Demolition Project, gravado em uma instalação artística, é baseado nas experiências da cantora em viagens ao Kosovo, Afeganistão e a América de Trump, mais especificamente o bairro de Anacostia, em Washington. Assim, o momento da carreira condiz com a proposta de um show grátis, baseado no voluntariado em ações sociais.

A ansiedade do público era palpável no Teatro Bradesco, em São Paulo. Após dois anúncios da organização, luzes se apagaram. Eram 21h10: PJ e seus nove escudeiros entraram em fila, como uma procissão fúnebre ou desfile militar. A introdução com “Chain of Keys” adiantou o clima sereno de boa parte do espetáculo, com a dedicação de Polly & Cia. centrada exclusivamente na interpretação das canções.

E nem precisava de mais. Os músicos de apoio funcionam como unidade, criando uma massa poderosa. Todos ali trabalham em prol dos arranjos, e momentos de destaque individual foram raríssimos no palco – o colaborador Terry Edwards brilhou em “The Ministry of Social Affairs”, onde executa uma linha agressiva de saxofone. Nem pareceu que os músicos eram de backgrounds e faixas etárias diferentes, além de alternarem entre instrumentos conforme o set, tamanha a coesão. A acústica do local reforçou essa energia, das guitarras estrondosas de “The Ministry of Defence” ao intimismo de “Dear Darkness”.

PJ Harvey e John Parrish (Imagem: Daniel R. N. Lopes)

Após o começo focado em Hope Six, vem uma sequência de quatro músicas do disco anterior: a emocional “All and Everyone”, “Let England Shake”, “The Words that Maketh Murder” e “The Glorious Land”. Como nos anos 80, quando o Talking Heads teve sua melhor fase em uma formação de 10 pessoas, os membros adicionais dão uma nova interpretação às músicas antigas, que se beneficiam das duas baterias, instrumentos de sopro, backing vocals e das inúmeras guitarras, ganhando volume e textura. A troca de instrumentos entre os músicos fez  até as faixas mais sóbrias e minimalistas como “Dear Darkness” e “White Chalk”, de seu disco de 2007, ganharem ainda mais força, se adaptando a variedade insuperável de sua carreira, que já completa 25 anos.

PJ e sua banda (Imagem: Daniel R. N. Lopes)

PJ deu um show a parte. Seu domínio de palco é absurdo, e as meras três palavras que entregou diretamente ao público (“Obrigada! Minha banda…”) pareceram até muito; sua comunicação era através da arte. A maturidade dos 48 anos nas costas se fundiu com a pulsação jovem que a tornou destaque nos anos 90: Harvey gesticulou, dançou e esbanjou suavidade até segurando seu saxofone no alto, enquanto ocupava o microfone central. Como era de se esperar, sua performance vocal foi impecável: sua entrega transborda emoção, sem nunca cair em exageros. Vale lembrar que ela também não esteve no front durante o show inteiro, pois tocou suas partes no saxofone junto aos músicos de apoio, na parte de trás.

Na segunda parte da apresentação, PJ revisitou outros discos de sua carreira. Além de “The Wheel”, primeiro single de Hope Six, e “Ministry of Social Affairs”, vieram duas músicas de To Bring You My Love (1995), seu disco de maior sucesso. O groove de “Down by the Water” e o tom de mantra da faixa-título formaram um dos contrastes mais peculiares da noite.

Final four dates of the tour in South America – Buenos Aires. 📷 by Todd Lynn (@toddlynnlondon)

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O melhor momento do show veio com “50ft Queenie”, seu hino subversivo do essencial Rid of Me (1993). Se a versão original gravada em trio já tinha peso suficiente para tremer as paredes, a interpretação ao vivo realmente se assemelhava a uma equipe de demolição. E foi o impulso necessário para levantar (literalmente) o público, que apesar de empolgado estava restrito às regras e cadeiras do teatro, e logo tomou todo o espaço disponível, se aproximando do palco. Mesmo quem optou por permanecer em seu lugar não ficou parado: o teatro do shopping Bourbon ficou pequeno.

E menor ainda quando a banda se despediu após “River Anacostia”. Palmas e gritos tomaram o recinto e duraram ao menos cinco minutos ininterruptos, quando enfim voltaram para o bis, que não aconteceu na apresentação do dia posterior. A euforia foi tanta que, em um primeiro momento, “Near the Memorials to Vietnam and Lincoln” e seu ritmo mais cadenciado soaram até injustos para a ocasião. Felizmente, a impressão caiu por terra ao constatar que, após 17 músicas, os dez no palco estavam 100% empenhados e felizes em estar ali.

A belíssima “The River”, de Is This Desire (1998), serviu de encerramento para o show, quando o mesmo se aproximava de 1h30 de duração. Em poucos minutos o centro comercial já estava trancado e os fãs de volta às ruas de São Paulo, tão problemáticas quanto os cenários que inspiraram The Hope Six Demolition Project, em uma volta à realidade após um show raro e intenso.

Setlist

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