Você sabe a razão das Cenas de um Casamento

Sete anos após atuarem juntos no filme O Ano Mais Violento, Jessica Chastain e Oscar Isaac esbanjaram química no tapete vermelho do Festival de Veneza (Foto: HBO)

Ana Júlia Trevisan

Da música à literatura, da pintura ao audiovisual, o amor é um dos temas mais explorados pela Arte. Sua complexidade inerente ao ser humano emerge artista e receptor da obra num invólucro que envolve desde a primeira instância. Da clássica à teen, as óticas para retratar a paixão mudam de acordo com seu público-alvo, mas todas se encontram no ponto de conversão do momento em que a vida e a arte se mesclam. Várias são as tramas que podem ser seguidas a partir do tema base e, ciente de seu potencial, Cenas de um Casamento escolhe seguir o caminho mais tortuoso para esgotar o assunto. 

Assim como sua temática, Scenes from a Marriage não é novidade no campo televisivo. A produção da HBO se inspira diretamente na homônima minissérie sueca de 1973, escrita pelo gênio Ingmar Bergman, e que um ano mais tarde teve seus seis episódios reeditados em formato de filme. A reprodução de 2021, encabeçada por Hagai Levi (In Treatment) com alvará de Daniel Bergman, um dos filhos de Ingmar, retira os personagens da Suécia da década de 70 e os teletransporta para os Estados Unidos da era da tecnologia e informação, atualizando as questões sociais da história e colocando o casal com suas responsabilidades invertidas.

A essência das entrelinhas da narrativa permanece a mesma, Cenas de um Casamento trabalha com um caminho pouco explorado do romance e que vai absolutamente na contramão dos finais felizes. Para Bergman, a maturidade de um casamento de anos não necessariamente representa um porto seguro. Enquanto a obra original consegue fazer o amálgama entre os conflitos internos e externos dos cônjuges, aqui a dramaticidade prova que tem intenção direta de ferir a ferro e fogo – e alcança seu objetivo. O roteiro confronta o comodismo com personagens fadados ao erro e a análise mais profunda do psicológico do casal fica por conta do espectador que precisa destrinchar a força motriz da produção, os diálogos.

Servindo como uma  metáfora à proposta da minissérie, os episódios iniciavam com cenas dos bastidores (Foto: HBO)

Nada é desproposital dentro do texto atualizado da minissérie de 2021. Abraçando a modernidade, Hagai Levi coloca Oscar Isaac na pele de Jonathan, um professor de filosofia que cuida da filha pequena para que a esposa se dedique à carreira. Já Jessica Chastain fica encarregada por dar vida a outra metade do casal, Mira, uma mulher bem-sucedida e provedora da família. A forma alternativa de paternidade e maternidade é uma dos pilares que sustenta a produção em seu ápice criativo, em que se propõe a discutir abertamente o casamento, o sexo e a monogamia.

No original de 1973, a esposa era Marianne, vivida por Liv Ullmann, e o marido, Johan, era interpretado por Erland Josephson. O casal vivia um matrimônio estável até o momento em que Johan revela ter um caso com uma mulher mais nova. Na readaptação de 2021, apresentada em cinco episódios, é Mira quem explora uma nova paixão fora da relação. Transtornados e agravados por todos os ímpetos que o casamento passa, os dois se prendem em um labirinto de dor onde resgatam as mágoas e brigas, mas a saída acaba os colocando próximos novamente, dificultando o distanciamento um do outro.

Desde o início Chastain disse que se sentiria confortável com as cenas de nudez desde que o equivalente fosse mostrado de Oscar Isaac (Foto: HBO)

Não há aqui romantização de amores mal resolvidos. A cadência das conversas e as sequências de frames demonstram a embriaguez de sentimentos quando se deita na cama que divide com seu parceiro e se sente sufocado. Em momento algum as personagens são dadas como incompletas, o grande apoio que o roteiro tem em seus diálogos deixa claro que o casal é preenchido por tudo aquilo que não tem coragem de dizer, a ponto de procurarem suporte em outros braços. 

Para dar um panorama do relacionamento, as histórias acontecem aos poucos, mesmo com seus episódios contando com mais de uma hora de duração. Com casais de amigos usados apenas como apoio secundário, a estratégia pouco funciona diante da narrativa autocentrada na dupla Jonathan e Mira. A maior funcionalidade dos coadjuvantes é ilustrar o distanciamento que está se formando entre os personagens de Isaac e Chastain. A sustentação da narrativa parte inteiramente dos protagonistas, que mostram a intensidade da atuação no repetitivo ciclo de romance, sexo e brigas, conforme os episódios progridem e criam sua essencialidade.

Jessica Chastain foi a primeira opção do diretor israelense, Hagai Levi, para viver Mira (Foto: HBO Max)

A intenção de Cenas de um Casamento não é chocar, e sim, prender numa narrativa subterfúgia que se arma de todos seus componentes para colocar a pauta da monogamia em voga. O ritmo da minissérie permanece em constante evolução, se intensificando conforme as rachaduras aparecem no relacionamento. É a fotografia de Andrij Parekh que auxilia nessa construção narrativa, dando destaque para os minuciosos movimentos e para as trocas de olhar. A filmagem em plano e contraplano feita pela câmera estática torna os sentimentos da obra ainda mais crus, comprovando o desassossego e inquietação do ambiente.

Os diálogos complexos ficam mais acentuados a partir do segundo episódio, Poli, se tornando um monólogo a dois no sucessor, The Vale of Tears. Nos momentos sem falas, quando a narrativa está prestes a transicionar, cenas da casa vazia são expostas sem censura funcionando como semiótica de um campo de batalha. A bruta solidez do ambiente não é coercitiva. Entrando no storytelling de maneira orgânica, os takes levam o espectador ao êxtase da emoção, dando a chance de um respiro ao mesmo tempo em que expõe as entranhas de uma ferida aberta. A desconstrução e reconstrução interior dos personagens é o xeque-mate que escancara a fragilidade do relacionamento não-monogâmico. 

Em relação a trilha sonora, Retrato em Branco e Preto de Chico Buarque e Tom Jobim basta para um bom entendedor da língua portuguesa. A canção brasileira extirpa-se em In the Middle of the Night, in a Dark House, Somewhere in the World, quinto e último episódio de Cenas de um Casamento. Em um momento visceral, uma voz feminina toma o ambiente verbalizando o mais interno dos pensamentos de Mira: “O que é que eu posso contra o encanto desse amor que eu nego tanto, evito tanto, e que no entanto volta sempre a enfeitiçar?

Das 108 indicações que a HBO recebeu ao Emmy 2022, apenas uma foi para Cenas de um Casamento (Foto: HBO)

Mas nem todos os apelos foram capazes de emplacar Cenas de um Casamento nas categorias do Emmy Awards. A força da evidência que Oscar Isaac cultiva desde Duna, passando por Scenes from a Marriage até chegar em Cavaleiro da Lua, garantiu ao artista a nomeação em Melhor Ator em Minissérie ou Filme. Já Chastain, mesmo após pular o tapete vermelho e se consagrar Melhor Atriz no prêmio mais importante do Cinema, acabou esnobada no Oscar da TV, tendo sua vaga preenchida por atrizes mais populares como Lily James e Julia Garner.

A única indicação de Scenes from a Marriage nos planta a semente da dúvida: até onde a popularidade e talento narram a vitória de um prêmio? Mesmo com a química estonteante entre o casal de protagonistas e a adaptação vinda de uma obra conceituada e aclamada de Bergman, a produção não foi abraçada pela Academia, que optou por trabalhos com mais brechas de roteiro, no entanto com um cast que ganha a atenção do público mais jovem.

Deixe uma resposta