Ana Laura Ferreira e Júlia Paes de Arruda
Encarar o passado não é tarefa fácil. Entretanto, faz parte da construção e amadurecimento de qualquer pessoa. Pensando em tudo para o que virou as costas, Luke Hemmings abre caminho para uma narrativa transcendental que fala muito mais sobre os seres humanos como um todo do que sobre si mesmo. Em When Facing the Things We Turn Away From, o que enxergamos não é apenas mais um membro de boyband em seu debut solo, mas um artista completo que deseja expor suas feridas para curar as nossas.
Seu progresso começou no final do mês de junho, com a chegada do single Starting Line. De cara, nosso primeiro contato com seu trabalho autoral possui uma energia muito sinestésica, partindo de ritmos mais lentos até ganhar compassos mais animados. A sensação é de que as angústias vão se progredindo com o passar da música, como se originasse de um despertar do eu-lírico até ele se dar conta do que está realmente acontecendo para pedir ajuda.
Quebrando a cadência da abertura do álbum, nos deparamos com Saigon, uma aposta muito mais diversa e de possíveis contragostos. Melodias mais industriais e mecânicas constroem uma atmosfera noventista e, de certa forma, mais dançante. Tendo a frase que intitula o trabalho de Hemmings, Saigon faz referência ao nome da extinta antiga capital do Vietnã do Sul, atualmente chamada de Ho Chi Minh.
A cidade foi palco de uma vergonha estadunidense durante a Guerra do Vietnã, expulsando a intervenção militar de duas décadas daquela região. Porém, em 30 de abril de 1975, o poder bélico do Vietnã do Norte, apoiado pelos Estados Unidos, culminou na extinção da cidade e de cenas de horror, semelhantes ao caos instaurado no Afeganistão nos dias de hoje. Coincidentemente ou não, a canção diz muito sobre enfrentar as coisas das quais nos afastamos e resistir “até que não haja mais nada de nós para continuar”.
Entretanto, por mais que o passado seja tema recorrente e fortificador do álbum de Hemmings, outro ponto que merece sua dose de debate são as referências astrais que o cantor utiliza em todo o compilado. E aqui falamos especificamente de astronomia. Isso porque as estrelas, planetas e galáxias compõem toda a narrativa de When Facing the Things We Turn Away From, se tornando o fio condutor que integra desde a estética até a energia das faixas. Exemplo disso é Mum, que mesmo trazendo uma perspectiva terrena, nos transporta para um lugar um tanto intergaláctico e abstrato. É tudo sobre sensações, e não sobre os sentidos sólidos.
Na verdade, essa poderia ser uma definição quase perfeita para o disco já que é difícil explicá-lo sem usar metáforas e sinestesias, sendo ele próprio uma figura de linguagem. É construindo uma ambiente ambíguo entre conforto e aspereza que Luke consegue nos acolher, ao mesmo tempo em que nos leva a refletir sobre questões um tanto filosóficas. Para além do onde vim e para onde vou, nos perdemos em entender os porquês humanos de Place in Me enquanto estamos “apenas dançando no escuro”.
Assim, é por toda sua subjetividade que o álbum consegue escapar de clichês e entregar uma sonoridade e musicalidade que, por vezes, sentimos falta em meio a tantas cópias genéricas no pop. Sem se prender em padrões e expectativas, o disco se constrói dentro de sua própria verdade e definição de qualidade, desenvolvendo um conto sensitivo que poderia ser comparado com grandes obras da Cultura, como o icônico 2001: Uma Odisseia no Espaço. Isso não apenas pela temática espacial em comum, mas por se desprender de parâmetros fabricados da indústria.
When Facing the Things We Turn Away From não se deixa levar pelo pop mainstream, mas se ergue como um pop com um quê de alternativo que pode vir a se tornar mainstream. A linha é tênue, mas pode ser sentida quando escutamos a coletânea. Sem se importar com aprovações, a preocupação real é com a progressão dessa narrativa de forma que o disco se constrói ponderando o equilíbrio, tanto na passagem das faixas quanto dentro delas. Desse modo, canções como Baby Blue e Bloodline conseguem se complementar e coexistir harmonicamente apesar de suas turbulentas diferenças que, ao se anularem, podem ser traduzidas como pacíficas.
E em meio a tantas fugas do pop comercial, nos perguntamos sobre a carreira de Luke até então, como vocalista da banda australiana 5 Seconds of Summer. Apesar de trilhar um caminho gritantemente oposto ao que escutamos até então vindo dele, podemos dizer que ainda assim vemos verdade em suas duas versões. Como grupo, 5SOS começou a trazer narrativas mais maduras desde Youngblood, consolidando sua nova fase em 2020 com Calm, mas ainda assim, nada se compara ao álbum solo de Hemmings.
É impressionante ver a evolução de Luke Hemmings, bem como escutar essa separação de seus trabalhos grupais. Enquanto alcances mais agudos são utilizados para potencializar sua voz em 5SOS, em When Facing the Things We Turn Away From nos deparamos com uma singularidade vocal muito mais serena, quase sussurrante. Essas diferentes explorações só aludem para uma versatilidade completa do cantor e, nesse caso, o australiano consegue entregar de forma espetacular e sem medir esforços.
Para além de arranjos vocais, todo o álbum é construído numa aura de suavidade. Enquanto as canções de 5 Seconds of Summer exploram acordes de guitarra, baixo e de percussão bem presentes, a musicalidade do projeto de Luke se resume primordialmente em cordas de violão e teclas, tanto de piano quanto de teclado. Talvez a faixa mais destoante de toda a coletânea é Motion, que abrange, ao mesmo tempo, o Hemmings da banda e o da carreira solo. Versos mais aglutinantes e um clipe psicótico marcam uma faceta ainda desconhecida do australiano, como se estivesse à mercê de uma ressaca moral. A diferença é nítida, mas conseguimos enxergar quão poderosas as personalidades podem ser, trabalhando sozinhas e em grupo.
Contudo, há um único detalhe que pode fazer do álbum um sucesso agridoce entre o público e a crítica: a sua pitada de alternatividade. Encarando um público que se deliciou com os vocais amargos de Olivia Rodrigo em SOUR recentemente, enfrentar toda a melancolia existencialista de Luke pode ser uma tarefa complicada. Mesmo contemplando um mesmo gênero e um público muito próximos, podemos ver o choque entre duas gerações do pop que convivem em uma simetria discordante. De um lado, estamos de frente com a prole da era TikTok – tentando encontrar ritmos que se encaixam em danças coreografadas. Do outro, os descendentes da década de 2010 – buscando maneiras de não serem afetados pelo looping de músicas em challenges do aplicativo vizinho que ressignificam o sentimento original das canções.
Por mais doloroso e difícil que possa ser, encarar o que deixamos para trás é necessário e um caminho pelo qual todos deveriam passar. Essa é a mensagem que When Facing the Things We Turn Away From nos passa e imprime em seus sentimentos. Sem medo de ser rechaçado como fraco, Hemmings nos ensina que pedir desculpas e fazer as pazes com o passado é um ato de coragem para poucos, e que aqueles que se propõem a se aventurar nas turbulentas águas das emoções não costumam se arrepender. No final da história, seus eu do passado, do presente e do futuro continuam ali, em frente ao espelho.
Muito bom! Adorei. E obrigada pela descriçao das fotos, sou deficiente visual e nao fazia ideia do que eu tava perdendo até agora. Un grande abraço desde Argentina