Caroline Campos
É inevitável assistir a Uivos São Ouvidos, do diretor Julio Hernández Cordón, e não lembrar, mesmo que vagamente, de A Ghost Story. No entanto, enquanto o fantasma de Casey Affleck apenas observa impotente a vida ao seu redor, a figura do pai de Fabi, vestido em um lençol e com uma máscara bizarra que sussurra em seu ouvido, participa ativamente do filme todo. Exibido na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e disponível gratuitamente no Sesc Digital, o longa mexicano é um curioso e estranho retrato dos dias de uma garota apaixonada pela bicicleta e pela liberdade.
As comparações ficam por aí, afinal, ao que tudo indica, o pai de Fabi não está morto. Ou está, pois a história nos é jogada de tal forma a fim de mantermos a cabeça aberta, que nunca temos certeza de nada, sem manter muitas amarras narrativas ou de personagens. Fabiana Hernández Guinea é realmente filha do diretor debaixo do lençol, fato que é deixado claro logo na abertura do filme. Como se mandasse stories do Instagram para a garota, o realizador conta todo seu plano, desde o nome do longa até seus amigos pessoais que iriam interpretá-lo.
O resultado é uma sinfonia bizarra de momentos que envolvem Francisco Barreiro dando vida a quase todo o elenco além de Fabi. Ela, por sua vez, pode nos enganar de início. A impressão é de que a garota que é o verdadeiro fantasma, seguindo os passos do pai e repetindo tudo que ele fala, sem vontades próprias. Com o passar do filme, entretanto, nós conseguimos ver a verdadeira ferocidade da jovem em busca do lago de Texcoco e sua poesia ao se conectar com o antigo Nezahualcoyotl, antigo guerreiro da era pré-colombiana. Além disso, a personalidade decidida clama sempre pela liberdade que apenas sua bicicleta consegue lhe fornecer, percorrendo ruas, fugindo dos adultos e escalando grades e muros.
A obra, que participa da seção Perspectiva Internacional, possui momentos em que opta por moldes de documentário, entrevistando moradores da região de Texcoco e focando em suas histórias. São decisões criativas que levam o filme para fora da caixinha, como a câmera que acompanha as corridas e escaladas de Fabi – que, por sinal, nunca para em lugar só e visita uma infinidade de cenários que seu pai diz ter se aventurado. A figura paterna ao seu lado toma muitas formas, nem sempre com o pano branco. Às vezes, é claramente o diretor com apenas uma bandana no rosto, outras, está toda de preto passos atrás.
Em apenas 72 minutos, Cordón, que também roteiriza, consegue manter Uivos São Ouvidos interessante, mas não é capaz de sustentar a sua narrativa. Nós simpatizamos com Fabi e acompanhamos as transformações hilárias de Barreiro, porém, o resto da obra segue com um vazio mal explicado disfarçado de alegoria. A figura de uma mulher-lobo na obra não é nada relevante, apesar de nossa curiosidade quanto a ela. E, bem, o final com atmosfera ambientalista não convence o espectador de sua preocupação.
No entanto, é válido ressaltar que o longa possui mais méritos do que qualquer outra coisa. O espírito experimental que o ronda somado à carreira subversiva de seu diretor, que já passou por outras edições da Mostra, o transforma em uma experiência necessária sobre as marcas da passagem do tempo e nossas vivências pessoais. Fabi diz mais sobre ela ao revisitar a infância de seu pai do que esperaríamos, e a performance simples da garota é que a torna marcante.
Se Escuchan Aullidos é uma narrativa tão alucinante quanto alucinada. Os uivos de reconhecimento de seus personagens ao longo de pequenos momentos são responsáveis por reforçar o caráter selvagem e sem rodeios que Cordón quis passar. Apesar do estranhamento no início (e no final e no meio), embarcamos na jornada com altas chances de fracasso e um destino de sucesso. E é essa contradição natural que sempre revigora o panorama da Sétima Arte, que, como Fabi, está sempre em escalada, clamando por liberdade.