Henrique Marinhos
Treta, como comédia dramática, beira ou até ultrapassa o humor ácido ao acompanhar um surto de raiva no trânsito entre duas pessoas, que acabam deixando isso tomar conta de suas vidas. Criada pelo hilário Lee Sung Jin (Thunderbolts) e produzida pela A24, uma das produtoras mais aclamadas do Cinema independente norte-americano, a obra reúne os talentosos Steven Yeun (Minari – Em Busca da Felicidade) e Ali Wong (Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa), protagonistas e produtores executivos que, durante as filmagens, elogiaram um ao outro por seu senso de humor e atuação.
A série explora as consequências psicológicas, sociais e morais de um simples gesto de fúria que se transforma em uma obsessão e reflete a realidade. Amy Lau (Wong) e Danny Cho (Yeun) são dois estranhos que se envolvem no que poderia ser apenas um desentendimento passageiro, mas que se transforma em uma espiral de vingança, paranoia, violência, beleza, crítica e busca pela libertação, afetando todas as áreas de suas vidas e das pessoas ao seu redor.
Danny Cho retrata a frustração de muitas pessoas que se sentem presas em uma vida sem sentido e sem realizações. Ele é um empreiteiro fracassado, incapaz de concluir seus projetos ou manter relacionamentos estáveis. Além disso, precisa sustentar seu irmão Paul em Los Angeles e trazer seus pais da Coreia do Sul. Sentindo-se um perdedor sem controle sobre seu destino, o personagem busca na raiva uma forma de escapar da realidade e se sentir vivo, projetando em sua rival toda a insatisfação e ressentimento.
Por outro lado, Amy Lau se sente solitária e incompreendida. Após o incidente, ela desenvolve uma dependência por adrenalina – ou por Danny – que a faz perder o controle e a razão. Apesar de ter um negócio de plantas bem-sucedido e de finalmente ter recebido uma oferta para ter mais tempo livre com família, a milionária excêntrica Jordan, interpretada por Maria Belo, a leva ao limite e mantém incertezas quanto à proposta: seu tão esperado (e merecido) lugar fora da classe trabalhadora, fruto de cinco anos de intensa dedicação e fingimento.
Ao longo da trama de Beef, a rivalidade entre os protagonistas é explorada através de diversos temas que permeiam suas vidas, tais como isolamento, violência, competição, inveja, hipocrisia e falta de empatia. Embora ambos tenham sua parcela de culpa em relação aos eventos, sua conexão e raiva se fortalecem à medida que se enfrentam. Uma junção ao aprofundamento de suas nuances, que completam o espetáculo, nos levam a entender ou questionar suas motivações, propósitos e desejos. Eles são, ao mesmo tempo, heróis e vilões de suas próprias histórias, buscando uma forma de libertação e redenção.
A obra também é formada por um elenco majoritariamente asiático-estadunidense, o que é raro e importante na indústria audiovisual. Segundo o showrunner, em entrevista ao New York Times, isso não foi uma decisão intencional, mas uma consequência natural de explorar os mundos desses personagens, que têm origens e culturas diversas, mostrando a complexidade e humanidade dos papéis asiáticos que, em Treta, não são estereotipados ou marginalizados. Em junção aos desdobramentos que a rixa principal desencadeia, a escolha do cast é um bônus, permitindo núcleos e histórias paralelas bem encenadas por um elenco de apoio forte, com nomes como Ashley Park, Justin H. Min, Andrew Santino e David Choe.
Apesar da qualidade técnica e artística da obra ser indiscutível, o clima caótico e surreal acaba não sendo tão impactante quanto poderia. A exemplo do clímax de cada episódio, que acaba destoando dos elementos que o constroem: quando a bomba está prestes a explodir, no auge da tensão, descobrimos que, na verdade, era o temporizador de um forno. Essa quebra de expectativa diminui a potência da narrativa em alguns momentos. No entanto, pode-se argumentar que essa lentidão auxilia na construção da narrativa completa, também aproximando a obra da realidade imprevisível em que vivemos e escalonando toda tensão em direção ao episódio final, Figuras de Luz.
Baseada, ironicamente, em fatos reais, Lee Sung Jin revelou à TODAY uma discussão no trânsito que o inspirou: “Estou indo para casa e essa pessoa está na minha frente. Se formos em direções diferentes, eu não ia segui-la. Mas acabamos indo na mesma direção […] Foi tipo uns 30 ou 40 minutos. Então, tenho certeza que ele achou que eu fosse um maluco descontrolado o perseguindo“. Felizmente, ele decidiu canalizar esse sentimento em um projeto criativo, autêntico e ousado como Treta.
A série é um dos sucessos da A24, responsável por filmes como Moonlight (2016), Lady Bird (2017) e Hereditário (2018). A empresa é conhecida por lançar obras de baixo orçamento, mas de alta qualidade artística, que costumam ser premiadas e elogiadas pela crítica especializada, como Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (2022). Apesar de apresentar um know-how impressionante na produção de filmes, sua aventura no universo da Televisão retém grandes sucessos sem tantas tentativas, como em Euphoria, que quebrou recordes de audiência na HBO Max.
A trilha sonora é nostálgica e remete aos anos 1990 e 2000. A supervisora musical Tiffany Anders assumiu a tarefa de encontrar músicas que combinem com o tom da série, sem tornar as coisas muito óbvias. Ela inclui canções de artistas como Bush, Christina Aguilera, Kelly Clarkson, The Smashing Pumpkins e Hoobastank, criando contrastes muito sutis, talvez até demais ao demonstrar a contraposição e rivalidade entre os protagonistas. Em momentos como a introdução do caos e a sátira que se seguem na sequência com Liquid Dreams do O-Town, no episódio piloto, fazem tudo valer a pena.
A precisa fotografia da trama foi feita por Larkin Seiple, mesmo diretor de EEAAO. Já a edição minuciosa e direta foi realizada por Harry Yoon, Nat Fuller, Laura Zempel e Jordan Kim, que trabalharam em séries como The Walking Dead, Better Call Saul e Watchmen. O resultado da união desses profissionais, especialmente, reflete que não basta uma vida regida por paletas pastéis e extrema organização, como Amy procura para alcançar a felicidade, mas justamente o espaço a ser dado ao que é inerente à nós: a ira, a agressividade, a frustração e a raiva. Não apenas performances sociais sufocantes que o mundo nos apresenta, quase sem opções.
Em um artigo da Netflix, os criadores procuram explicar a pretensiosa escolha de intitular cada episódio com citações e obras de arte que fazem referência a filmes, poemas e discursos famosos. No segundo episódio, por exemplo, o título O Êxtase de Estar Vivo é referente à citação de Joseph Campbell, que diz: “Eu não acho que o sentido da vida é o que estamos buscando. Eu acho que é a experiência de estar vivo […]”. Toda essa construção complexa e complementar ao que a narrativa apresenta é extremamente perigosa, afinal, se fosse injustamente boicotada por uma trama tão surpreendente, em termos de propósito, a adição dessas obras se tornariam munição ao inimigo.
Assim, Treta nos convida a refletir sobre como lidamos com nossos sentimentos negativos e com o dos outros, em um mundo que parece cada vez mais complexo e hostil. Isso, nos apresentando personagens que se deixam levar por impulsos destrutivos, mas que também buscam por algo mais autêntico e humano em suas vidas. A obra nos faz questionar se há outras formas de expressar e acolher a nossa agressividade, sem cair na armadilha de um sistema que se alimenta das nossas angústias e sofrimentos. Sem uma segunda temporada confirmada, mantemos o sentimento de esperança de que algo tão bom possa melhorar e o medo de que percam a essência que faz a série ser especial.