Vitória Lopes Gomez
Opte por separar o artista da Arte ou não, Julia Ducournau já cravou seu nome em suas produções. Titane, a mais nova empreitada da cineasta francesa, estreou no Festival de Cannes, onde fez história ao levar a honraria máxima da premiação, a Palma de Ouro, e chegou ao Brasil na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. O segundo projeto veio antecipado depois do sucesso do polêmico Grave, mas a sangrenta e canibalesca estreia da diretora vira só a porta de entrada para os horrores que vem depois. E não adianta, nem Cannes conseguiu: não tem como se blindar de Titane.
Também não vale a pena destrinchar a trama do longa, a experiência completa requer o inesperado. Basicamente: Alexia (aqui, Adèle Guigue) sofreu um acidente de carro na infância e teve uma placa de titânio implantada na cabeça. Anos depois, já adulta (agora, Agathe Rousselle), ela dança em cima de carros, transa com eles e mata pessoas. Quando precisa desaparecer depois de uma série de assassinatos, ela assume a identidade de Adrien Legrand, um menino há muito tido como desaparecido.
Titane é uma montanha-russa. Os caminhos imprevisíveis que o roteiro toma, também cortesia de Ducournau, vem acompanhados dos cruzamentos entre gêneros cinematográficos. O filme constantemente troca as marchas entre o terror, o suspense e o drama, em uma mistura que une e existe nos três, ao mesmo tempo que se empenha em quebrar as convenções de todos. Se o longa oferece sequências brutais e sanguinolentas, outras provocativas e traumatizantes, a violência vem acompanhada de uma surpreendente ternura, profundidade emocional e, por vezes, até humor.
A diretora não se atém a um rótulo cinematográfico, nem a um limite, mas se encoraja a ir além em sua obsessão pelo corpo humano e pelos extremos que este pode atingir. Ou não pode, mas ela os empurra até o máximo mesmo assim. Se uma Alexia transando com o carro não fosse bizarro e abstrato o suficiente, uma Alexia grávida dele (sim, do veículo) contra sua vontade e lactando graxa leva a predileção da cineasta pelos absurdos corporais a outro nível, ao mesmo tempo que a barbaridade se torna cômica pelo seu fator inacreditável. Na visão alucinante da francesa, Titane pode se enquadrar como uma comédia dark surrealista ou um horror chocante em sua forma mais pura. Provavelmente, ele se encaixa nos dois ao mesmo tempo.
Mas seria reducionista limitar Titane ao seu horror corporal. Enquanto filma as gráficas punições e abusos à carne humana, Julia Ducournau parece se divertir em apenas dar dicas dos temas e metáforas que almeja abordar, só para deixá-las por conta da interpretação do próprio espectador. Em oposição ao explícito de algumas cenas, se Alexia transa com um carro porque a criadora pretendia discutir a sexualidade ou a libertação sexual ou se o faz porque ‘por que não?’, a subjetividade que acompanha o nítido é impressionante, intrigante e também perturbadora. Afinal, Titane é um estudo sobre a maleabilidade humana ou uma reflexão profunda camuflada sob tormentos?
Ao longo das quase duas horas de duração, a idealizadora de toda essa loucura não tem vontade nenhuma de responder a questão. Ao contrário, ao invés de explicitar suas intenções, ela deixa à mostra apenas o exterior, a forma carnal que recebe todos os desconfortos, enquanto o interior vira o mistério a ser – ou justamente não ser – desvendado. Mistério e questionamentos esses que ela levanta para, também, levá-los ao seu máximo. Por exemplo, por que Vincent Legrand (Vincent Lindon), o pai do menino desaparecido incorporado por Alexia, simplesmente aceita que ela é seu filho, sem nem mesmo questionar ou duvidar?
Nas mãos de Ducournau, o que poderia ser uma falha, uma conveniência relevada somente para mover o restante da narrativa, se reinventa para revelar o luto, a dependência emocional, a necessidade de afeto e até o amor incondicional. Ao passo que avança, Titane adentra camadas da própria existência, forma e identidade humana e se desdobra sempre além do que já era. As transformações do corpo de Alexia, constantemente se escondendo sob o disfarce de Adrien enquanto carrega a prole de um carro, e também de Vincent, que injeta anabolizantes para manter o corpo envelhecendo em forma, são o que sustentam as mudanças das personagens, principalmente em seu emocional, e abrem caminhos para outras interpretações.
Já que Titane se vale do exterior carnal e da exploração de suas excruciantes fronteiras para refletir sobre gênero, seus estereótipos e performances, fluidez, sexualidade e laços familiares, o recipiente para a insanidade do filme tem de fazer jus a sua proposta. Para apresentar a assassina fugitiva grávida de um carro, Alexia, e todas as suas metamorfoses, a mente genial e insana por trás da produção fez questão de preservar a falta de precedentes e a singularidade de sua protagonista. Julia Ducournau optou por uma atriz estreante e Agathe Rousselle ascendeu à tarefa.
Sem apego a sua casca humana, assim como sua personagem, Rousselle se entrega de corpo e alma às transformações de Alexia. A ausência de projeções prévias em cima da intérprete concedeu à diretora o passe livre para explorar as mudanças da personagem e as suas ações pelo que elas são, sem comparações ou interpretações extralinguísticas. A aparência andrógina de Agathe também acrescentou à escolha, que sustenta a base de Titane: conduzindo Alexia de um mundo estereotipadamente feminino, em que ela dança no topo de carros para o deleite de homens que a sexualizam, para outro masculino, a diretora vai além das tradicionais performances e expectativas de gênero.
É sob sua identidade masculina, por exemplo, que Alexia é acolhida por Vincent e forma uma relação com ele, justamente por ser tida como seu protegido. Mesmo quando a personagem desliza e aparece grávida na frente do pai, ele continua a considerá-la como filho, com quem pode se identificar e compartilhar do companheirismo para com outro homem – e não com uma mulher. As árduas e cruéis violências carnais, que englobam, mas também ultrapassam gênero, funcionam para além da pornografia do horror corporal e externalizam os conflitos interiores, esses que as performances excruciantes de Rousselle e Lindon também encarnam. Por mais duvidoso que sejam, os dois geram até empatia.
No volante da alucinante e delirante viagem de Titane, a diretora francesa sabia que não seria tão simples fazer se relacionar com os personagens. Pelo menos (e espera-se), não por suas ações. Atingindo suas intenções de que, se a audiência não pudesse simpatizar com Alexia por suas morais, que seja pelo seu corpo, este funciona como um “cordão umbilical entre a audiência e ela”. Mais uma vez e a cada minuto ao longo dos seus cento e seis, Titane, assim como Grave, abre a porta da carne para adentrar as manifestações do psicológico humano: se os atos da protagonista não são universais, a sua dor é.
Ao final, mais do que um thriller extravagante, do que uma comédia insana, terror corporal primitivo ou de um drama complexo, Titane é essencialmente a mistura de todos, e também a união de todas as metáforas e simbologias que se pode tirar dele. Acima de tudo, o filme soa como um exercício de humanidade e vulnerabilidade, nem que seja a nossa: Julia Ducournau constantemente desafia o público a encontrar o humano no animalesco, mesmo que seus próprios personagens o rejeitem.
É com sua visão oblíqua, fantástica, surreal e sedutora que a diretora leva sua obsessão e celebração do corpo ao Oscar 2022: ainda é cedo para cantar vitória, então, por enquanto, a ousada produção é somente a submissão oficial da França na categoria Melhor Filme Internacional. Dados os devidos créditos, Titane é realmente uma corrida, em que a única certeza é de que o carro que leva a agitada criança Alexia no banco de trás vai bater. E nem nós, nem ela, estamos usando cintos de segurança.