Raquel Dutra
“Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito à sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados”, diz a 13ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que ‘aboliu’ a escravidão no país em 1865. Um dos maiores marcos da Terra da Liberdade, no entanto, guardou uma ressalva em seu texto, definindo logo em seguida que “os devidamente condenados por um crime” eram a sua exceção, criando em si mesma uma condição que permitia a prática do que acabava de extinguir. A conclusão da premissa da Emenda é literal e simples: quando você é condenado, você se torna um escravo do Estado.
Não à toa, o termo que se usa para definir a quem luta pelo fim do sistema carcarário vigente é o mesmo que se usava para se referir a quem lutava pelo fim da escravidão. A longo prazo, o que o governo de Abraham Lincoln fez com o que deveria ser um avanço na garantia do direito à liberdade, à vida e à igualdade foi permitir o desencadear de um fenômeno social denominado por estudiosos como o sistema escravista moderno. No país que abriga 5% da população mundial, está 25% da população carcerária do planeta. Assim, a cada quatro presidiários ao redor do mundo, um está encarcerado nos Estados Unidos. Como diz sua própria lei, essas são as pessoas submetidas à escravidão no século 21, e essa é a provocação de Time.
O tema já é conhecido nos debates provocados pelo Cinema. A estrutura de servidão que se fundamenta no sistema prisional dos Estados Unidos foi desenhada por A 13ª Terceira Emenda (13th, no original, de 2016) e alastrada pelo mainstream com o seu reconhecimento no Oscar 2017. Cinco anos depois e numa estrutura narrativa oposta e complementar à obra precursora, Time volta a clamar por atenção e resolução para uma das situações mais urgentes da América através da Sétima Arte, mais uma vez com um reconhecimento considerável da elite cultural norte-americana.
O diálogo com o documentário de Ava DuVernay é direto e integra o raciocínio proposto pela cineasta em 2016. Enquanto A 13ª Emenda retoma a história dos Estados Unidos para construir um debate completo, profissional, profundo e teórico – ótimo, inclusive, para quem quiser compreender a fundo a história dos direitos civis norte-americanos, tema comum em algumas das principais produções dessa temporada (como Judas e o Messias Negro, Estados Unidos vs. Billie Holiday, Uma Noite em Miami… e Os 7 de Chicago) -, Time se volta para o micro, no retrato que a diretora Garrett Bradley captura de vidas atravessadas pela política do encarceramento em massa.
Aqui, estamos dentro da família Richardson, iniciada através daquele casal do Ensino Médio completamente apaixonado e sonhador que prioriza seu amor acima de tudo. Tão logo como eles juntam os sobrenomes e frutificam a árvore genealógica, surgem os desafios da vida que começam a tirar as coisas do eixo, mostrando que o sonho americano não é pra todo mundo e transformando medidas desesperadas que normalmente seriam inimagináveis como uma – e talvez a única – opção. Então, numa tentativa de assalto a um banco, a matriarca Sibil Fox Rich e seu amado Robert Rich são pegos. Ela, pilotando o carro de fuga, é condenada a 3 anos e meio de detenção enquanto grávida de gêmeos. Ele, liderando a ação que não teve desdobramentos violentos, deve 60 anos severos à justiça, inicialmente sem direito à condicional ou redução de pena.
Só que essa situação não é contextualizada ao pé da letra nos primeiros minutos. O que se vê na abertura do documentário (disponível no Amazon Prime Video) são gravações curtas, caseiras e íntimas de uma mulher apaixonada e desolada que registra os momentos de sua família para um dia mostrá-los à quem a formou junto dela, que não está presente. Até que ela acaricia e divide com a câmera o ventre que abriga dois bebês, solenemente apresentados como Justus e Freedom, e revela a condição de sua família. Ali, no detalhe, Time revela a que veio, colocando-nos diante de uma história sobre um amor radical, uma urgência de justiça e uma promessa de liberdade.
O centro de tudo é Fox Rich, que conduz a narrativa, gerencia e mantém a família, luta pela liberdade de seu marido e é a principal colaboradora de Time, que de início, seria apenas um curta sobre a história de sua família. A ideia se transformou quando Rich apresentou à Bradley um material de 100 horas de vídeos caseiros que ela havia gravado nos últimos 18 anos como forma de dividir seus momentos com os filhos com o seu marido encarcerado. Reconhecendo a riqueza sentimental e subjetiva da história registrada dos Richardson, a jovem diretora mergulhou no passado e presente da família para debater os impactos do encarceramento em massa e pautar uma discussão sobre o abolicionismo penal.
O poder de Time, aliás, está exatamente na mistura borrada do tempo, livre de qualquer progressão linear. Primeiro, vê-se as crianças brincando em parque de diversões, depois, elas estão se formando na faculdade, depois, estão de volta à infância indo para o primeiro dia na escola, e depois, são adultos acompanhando o dia a dia agitado da mãe no negócio da família. Em qualquer um dos momentos, o pai não está. O tempo é distorcido, incerto, sugado pelo buraco negro da ausência, intensificado pela dor da injustiça perversa e pela energia drenada para a resistência na luta pela liberdade, sempre acompanhado pela tremulação do arrependimento e pelos silêncios oferecidos à quem espera anos por respostas.
E quando o nosso entendimento ameaça cair em algo romantizado, estagnado numa admiração ao poder e à força do amor e adorador de um arco de redenção, Time calibra sua mensagem na voz firme e desperta de sua principal figura através dos termos “pessoas pobres“, “pessoas de cor” e “pessoas brancas”. Logo, Fox (e às vezes sua mãe implacável) dá nome aos bois com a expressão “sistema moderno de escravidão” no meio de suas narrações em off ou nas palestras que ela ministra enquanto ativista abolicionista, assistidas majoritariamente por outras mulheres negras e pelas lentes observativas de Zac Manuel, Justin Zweifach e Nisa East. Com plena consciência de seus atos e das consequências deles para todos ao seu redor, ela também entende muito bem o seu contexto, dominado por estruturas de poder que fizeram dela e sua família uma demonstração do classismo e racismo institucional.
Com uma temática densa nas mãos, a direção de Garrett Bradley – premiada no Festival de Cinema de Sundance, onde também concorreu ao Grande Prêmio do Júri antes de passar pelo Critics Choice Documentary Awards, Independent Spirit Awards até chegar na seleção diversificada dos Melhores Documentários do Oscar 2021 – vai pelo caminho oposto ao da criminalização para alcançar uma linguagem poderosa de humanização. Time é uma obra de escuta – tanto pelo verbal quanto pelo não-verbal, tanto para quem o fez quanto para quem o acompanha. Tocar nesse assunto é incitar polêmicas e opiniões inflamadas e todo filme demonstra saber disso. Então, ele conta com a abertura de quem o assiste, que esteja disposto a ir até ele sem preconceitos, permitindo-se desmontar e bagunçar suas noções morais para enxergar e compreender uma realidade que não é distante de nós como pode parecer.
O filme faz isso através de uma montagem e roteirização atenta, calma e compassiva, e de uma fotografia que procura pelos olhos de seus personagens, olha devagar e observa todos os detalhes. Nessa direção, cria-se também um contraste estético inteligentíssimo: os registros antigos de Rich são repletos de texturas, mas as imagens do presente são chapadas, um tanto esmaecidas e etéreas, casadas na ausência de cor preenchida pelos tons de preto e branco. Ao contrário do que se esperaria de uma obra que retrata o passar do tempo, Time não deixa suas marcas visíveis objetivamente, forçando-nos a ouvir e observar com atenção.
Essa é a forma que Time encontra para dizer que não busca explicações, justificativas ou dicotomias morais. O filme não sangra a ferida do arrependimento, não espetaculariza, não alarma nem discute a legitimidade do crime ou da punição. O apontamento desses aspectos fica de fora da tela, exaustivamente julgados pela sociedade que, em contrapartida, não parecem ser importantes nem mesmo para a própria justiça, que aparelhada e viciada, tem uma outra finalidade no lugar de ser de fato justa. O que ocorre é um gesto de devolver o olhar humano para pessoas que só são vistas atrás das grades, quando não como apenas números, destacando sua existência para além de estereótipos e retratos rasos.
A delicadeza de Time, entretanto, não o faz ser algo menos firme, preciso ou seguro, vide a forma como ele escolhe suas palavras e nomeia seus objetos: a vivência da família fala sobre um sistema organizado, não só de uma ação dentre muitas outras sintomáticas de uma sociedade desigual. A intenção da diretora (que também assina a produção junto de Kellen Quinn e Lauren Domino) segue sua identidade de investigar em suas obras as tramas que compõem o tecido social norte-americano: entender as dinâmicas por trás do sistema prisional, que comprometem muito além da vida de quem é preso, e alertar para os seus efeitos de marginalização de populações específicas e propagação de estruturas de poder.
Ao fim, surge o óbvio: muito se reflete sobre o tempo em Time. Uma família que tem uma relação tão complexa com ele apresenta visões otimistas e pessimistas, esperançosas e revoltadas, age diante dele de muitas formas diferentes. “O tempo é o que você faz dele”, conclui um dos filhos em um dado momento, antes da luta de duas décadas encontrar sua resolução. Para eles, tempo é vida, tempo é resistir, tempo é esperança e também decepção. E a vida não acaba, a luta não acaba, o amor não acaba, o tempo não acaba. Dentre todos os devaneios filosóficos que podem surgir da sutileza do filme, a reflexão sobre o tempo entre os 20 anos mais severos da história da família Richardson se transforma em algo dialógico à toda a história dos últimos 200 anos na América: iniciados com uma promessa de liberdade e inseridos num tempo que muda vidas em anos, dias e até minutos, mas que também é parte de um sistema que não mudou em dois séculos.