Vitória Silva
Nós nos adaptamos aos famigerados plot twists. As grandes reviravoltas, viradas de mesa e acontecimentos mais que inesperados nas histórias que assistimos. Virou até sinônimo de qualidade assistir a um filme ou uma série que saiba conduzir o dito-cujo com veemência, dando um final de nos deixar de boca aberta. Por esse motivo que obras como Dark, Seven e Donnie Darko ficaram amplamente reconhecidas. E The Undoing brinca e se diverte com esse anseio comum.
A minissérie de David E. Kelley, mesmo criador de Big Little Lies, se ambienta na alta sociedade nova iorquina. Nicole Kidman dá luz à psicóloga Grace Fraser, que tem uma vida luxuosa e bem sucedida, ao lado de seu marido Jonathan Fraser (Hugh Grant), um renomado oncologista infantil, e seu filho Henry (Noah Jupe). Em meio a caminhadas pelo Central Park e jantares com outras mães riconas, ela se depara com um ponto fora da curva em sua rotina de regalias, a misteriosa Elena Alves (Matilda De Angelis).
Mãe de um dos colegas da escola de elite em que Henry estuda, a jovem surge de forma inesperada no cotidiano de Grace, e se aproxima dela na mesma intensidade. E não é só a presença de Kidman no elenco que se coincide com a outra produção aclamada de Kelley, mas também a narrativa de suspense. Ao final do primeiro episódio, o corpo de Elena é encontrado em uma cena de assassinato.
Para virar a realidade rotineira de Grace de ponta cabeça, Jonathan é dado como desaparecido no dia seguinte, e se torna um dos principais suspeitos do crime. Assim, a obra caminha para um verdadeiro thriller mesclado com um drama familiar, em que a protagonista oscila entre seus conflitos internos e a constante dúvida sobre a verdade do marido, ao passo que é reprimida no meio social em que vive.
Mas o bicho pega mesmo com o retorno do personagem de Grant, que é a grande peça-chave de toda a história. O cinismo descarado do britânico arma uma emboscada na mente da psicóloga, que se reflete em quem assiste. Não sabemos se acreditamos na versão do suspeito número 1, nas hipóteses que Grace cria ou nas milhares de evidências que a polícia traz, tornando quase impossível negar o que está bem embaixo do nosso nariz.
A protagonista cai no conto com muita facilidade, até demais para ser verdade, apesar dos inúmeros baldes de sensatez do seu pai (Donald Sutherland). Com o início do julgamento e as milhares de idas ao tribunal, a carcaça do oncologista vai se desfazendo aos poucos, enquanto a coitada da esposa clama por sua inocência, apesar de ela mesma não acreditar no que diz, e nem nós, mas colocamos a mão no fogo sem nem pensar duas vezes.
Nessa teimosia do público em tentar fugir do que parece ser óbvio que The Undoing constrói sua narrativa. E faz isso enquanto joga todas as pistas possíveis na nossa cara, seja com a amiga Sylvia, interpretada por Lily Rabe, afirmando no primeiro episódio que “é sempre a porra do marido”, ou pelo próprio título da série, que já indica o que não pode ser desfeito.
Mas o objetivo da trama só é bem sucedido, de fato, pela performance de Hugh Grant, que consegue nos enrolar sem nenhum esforço. Não fosse por isso, a produção não chegaria nem perto de prender a atenção do público até o último episódio. Tentar fugir do óbvio dizendo o óbvio é inovador em um primeiro momento, mas não se sustenta pela falta de desenvolvimento de outros possíveis suspeitos, como o marido de Elena Alves (Ismael Cruz Cordova), deixando uma única resposta lógica nas mãos do enredo.
A própria protagonista não tem a devida evolução, e passa todos os episódios apenas revirando suas milhares de incertezas. Como uma psicóloga reconhecida e craque em identificar as dores e conflitos do outro, seria mais do que ideal elaborar as camadas e camadas dessa contradição. Mas a direção pareceu querer focar mais em aproximar a câmera do olhar desesperador de Kidman e a tornar extremamente cansativa e sem motivação.
Tais lacunas da série são completamente preenchidas na também aclamada Mare of Easttown. Mesmo se aproveitando das manjadas reviravoltas em trama policial, a produção protagonizada por Kate Winslet consegue criar ganchos e personagens ardilosos, ao passo que, ao final da narrativa, não sabemos mais de quem duvidar. Um tempero que seria muito bem-vindo em Undoing.
No entanto, o charme de Hugh Grant foi suficiente para conquistar a Academia de Televisão. Não só isso, como conseguiu a única indicação em atuação para a série no Emmy 2021, em Melhor Ator em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme, e a sua segunda na categoria. O galã também vem com força nas previsões para levar a estatueta, podendo desbancar o favoritismo de Paul Bettany, realizando feito semelhante ao de Mark Ruffalo na edição anterior.
A outra indicação foi para Design de Produção em Programa de Narrativa Contemporânea (Uma Hora ou Mais), com Lester Cohen, Doug Huszti e Keri Lederman na disputa. Só deu para sentir falta do nome de Donald Sutherland em alguma categoria, por ter sido indicado pelo papel no Globo de Ouro e vencido no Critics Choice Awards, além de resgatar seu impecável semblante intimidador de Presidente Snow na narrativa.
The Undoing foge dos clichês com maestria, mas esquece de cumprir alguns requisitos principais de obras de suspense. Repetindo o ato de Big Little Lies, David E. Kelley se perde na condução final da trama. Mas, dessa vez, sem chances de recompensar o erro em uma próxima tentativa.