Jho Brunhara
São quatro da manhã. Você, palestino e morador da Cisjordânia, toma seu café, se arruma para o trabalho e começa uma jornada de três a quatro horas para chegar em uma obra de construção civil em Jerusalém, território atualmente controlado por Israel. Os 32km, que poderiam ser percorridos em 1h30, parecem ter o dobro da distância. Em certa parte do caminho, você precisa atravessar a fronteira, e, para isso, enfrentar um dos pontos de checagem de Israel. Nesse checkpoint, palestinos são tratados como se fossem animais. Caminham em túneis cercados por grades, abarrotados em centenas. Alguns escalam como podem, para fugir da multidão sufocante. Outros chegam a ser pisoteados, ou saem com uma costela quebrada.
Ao fim do funil, a única passagem é por uma catraca torniquete. Depois, um detector de metal, onde se tira qualquer vestimenta solicitada considerada suspeita. E, então, finalmente, um militar israelense verifica seu documento de identidade e seu visto de trabalho. A permissão para trabalhar em construções só é dada para homens maiores de 23 anos, casados, e que possuam pelo menos um filho. Ocasionalmente, um soldado entediado pode te humilhar antes de autorizar sua entrada no país, por pura ‘graça’. Essa é a realidade enfrentada por 70 mil palestinos, que necessitam dos empregos depois da fronteira para sobreviver, diariamente. Todos os dias.
The Present (الهدية), curta-metragem dirigido pela britânico-palestina Farah Nabulsi, nos mostra um pouco dessa violência vivida pelo povo da Cisjordânia. No filme, acompanhamos a ida de um pai e sua filha até a cidade de Bethlehem, para que possam comprar itens básicos no mercado e adquirir uma nova geladeira de presente para a mãe. A trama, inicialmente simples, revela camadas assustadoras sobre a vida na região. Yusef (Saleh Bakri, o pai) e Yasmine (Maryam Kanj, a filha) enfrentam o horrível ponto de checagem, que tem cenas verdadeiras exibidas no começo do curta: Saleh divide a tela ao lado de palestinos reais, que estavam a caminho de Israel para trabalhar.
No fim do checkpoint, pai e filha são humilhados e colocados em gaiolas até que seus documentos sejam conferidos. Finalmente liberados, caminham até a cidade de Bethlehem. Depois de adquirir a geladeira e as compras do supermercado, mais um problema: o carro que transportaria o eletrodoméstico da loja até Beitunia (onde moram) é impedido de passar. Yusef e Yasmine se veem com apenas uma saída: empurrar o item por todo o trajeto até a casa, com ajuda de um carrinho. Porém, antes, precisam novamente da autorização dos soldados no ponto de checagem. Mesmo nesse momento, exaustos, não encontram misericórdia das autoridades militares. A ficção, nesses casos, não vai tão mais longe quanto a realidade pode chegar, e novamente assistimos o abuso de poder e a humilhação, completamente gratuita.
O conflito Israel-Palestina é antigo, mas não tão velho quanto você, talvez, pense. Apesar da segunda diáspora judaica ter acontecido em 70 d.C., quem expulsou os judeus de Jerusalém foram os romanos, e os árabes pouco tem a ver com isso. O problema real começa no início do século 20, com o movimento sionista, e, posteriormente, o holocausto, influenciando o retorno de muitos judeus para a ‘terra prometida’ de Israel, que dividia a mesma localização com a Palestina histórica (naquele momento sob gestão britânica).
Conflitos borbulharam por décadas, até que em 1947 a ONU tentou implementar a criação do Estado de Israel e do Estado da Palestina, dividindo o território em duas partes. Israel declarou independência e anexou os territórios definidos pela Partilha. A Liga Árabe, que não concordava com o acordo pois via como uma injustiça com a Palestina, declarou guerra. Israel venceu o conflito, manteve os territórios, e, posteriormente, avançou com suas fronteiras em novas ações militares até alcançarmos o cenário atual, em que a Palestina ainda não é reconhecida como um país.
Onde quero chegar com tudo isso: apesar de Jerusalém ser uma cidade muito importante para o islamismo, judaísmo e cristianismo, a religião não é o motivo do conflito entre Israel e a Palestina. Judeus e muçulmanos convivem na região há séculos, e sempre dividiram o espaço geográfico. O caos se origina da necessidade de se ocupar e delimitar territórios, de se estabelecer nações soberanas. E claro, da ideia de jerico da ONU em aprovar um projeto sem que ambos os lados estivessem de acordo.
No presente, estamos caminhando para relações cada vez piores. Sediados na Faixa de Gaza, o Hamas, grupo terrorista palestino, assassina israelenses e controla a região pelo medo. Já no país ao lado, Israel usa da força militar para bombardear zonas urbanas em Gaza, e na tentativa de exterminar o Hamas, mata muitos civis palestinos. É fato: a dor das mortes de civis israelenses é imensurável, mas a quantidade de palestinos que morreram em investidas de Israel é muito superior.
The Present escancara um dos piores comportamentos da humanidade: o nacionalismo. Conflitos por território e soberania sempre existiram, e nem por isso eles são justificáveis como parte da natureza humana, ainda mais quando geram uma quantidade gigantesca de mortos, feridos e refugiados. Esse não é um texto que vai dizer quem está certo entre Israel e Palestina, já que ambos os lados sofreram e ainda sofrem. Igualmente, não podemos confundir as ações dos Estados como culpa dos civis. O ponto em comum aqui é mostrar que o sentimento de nacionalismo é uma doença. Ele afasta, segrega e gera conflitos. Bordas imaginárias deveriam apenas auxiliar na administração, e não deveriam funcionar como limites de impérios. O pertencimento a uma nação não deveria desumanizar outra, não deveria humilhar, oprimir, reduzir ou exterminar outro povo.
O curta-metragem de Farah Nabulsi é a primeira produção palestina a ser indicada na categoria Melhor Curta-Metragem em Live Action no Oscar, e concorre em 2021. É muito provável que não ganhe, mas apenas a indicação na maior premiação do mundo já vale a atenção para um assunto que ainda é extremamente relevante e acontece no mesmo planeta que residimos, com pessoas iguais a nós, civis que apenas querem viver vidas normais com a liberdade que todos têm direito.
A solução para o conflito entre Israel e Palestina fica mais difícil a cada dia, mas a paz e um acordo que seja verdadeiramente justo ainda não é impossível. The Present mostra um mundo aparentemente insolúvel para os adultos, mas deposita uma fé sutil nas crianças, quando Yasmine toma uma decisão arriscada e importante no fim do curta. A esperança nos tempos que vivemos é uma chama moribunda, mas que ainda está acesa, com muito esforço.