Caroline Campos
Foram 42 episódios. 42 longos, dolorosos e excruciantes episódios distribuídos em quatro longas, dolorosas e excruciantes temporadas para June Osborne dar o primeiro passo oficialmente fora de Gilead. Depois de rastejar até o seu quarto ano, já era hora de The Handmaid’s Tale tomar coragem e assumir uma nova perspectiva fora do pesadelo autoritário do país que um dia foi os Estados Unidos. No entanto, quando se trata de O Conto da Aia, até a tão sonhada liberdade é capaz de deixar um gosto amargo na boca.
June conseguiu, sim, mas a certos custos. A trajetória da personagem de Elisabeth Moss havia atingido seu maior pico no final da terceira temporada, quando organizou o Vôo dos Anjos e acabou baleada no meio de uma floresta. Resgatada por suas aias fiéis na primeira cena de 2021, é a partir daí que a trama finalmente volta a caminhar para a direção certa e decide por fim no ciclo tenebroso de sofrimento da heroína americana. Certo, mas e agora?
Nem June, nem Offred – a pessoa a quem somos apresentados na quarta temporada de The Handmaid’s Tale é alguém totalmente nova. A liderança nata da protagonista foi explorada ao extremo, especialmente enquanto se escondia e se recuperava com as companheiras na casa de Esther Keyes, a jovem e talentosíssima Mckenna Grace. June toma gosto pelo sangue de seus violentadores e se reconhece de vez como Mayday só para, de forma quase anticlimática, ser capturada de novo e, ainda, denunciar a localização de Janine, Brianna, Alma e as outras aias fugitivas.
Felizmente, os roteiristas da série comandada por Bruce Miller souberam medir o tempo restante dentro de Gilead, saindo rapidamente do cativeiro e nos apresentando enfim ao cenário de guerra que Chicago se tornou, uma das últimas cidades que ainda resistem aos Comandantes e suas palavras bíblicas. Apesar do arco sem grandes contribuições que os rebeldes representaram, são as interações June-Janine que prendem a atenção em meio aos escombros do passado. A pobre e caolha personagem de Madeline Brewer ganha um esperado vislumbre da vida antiga, só para ser mastigada e esquecida, novamente, pelo restante da temporada.
O que de início parecia uma fuga coletiva das aias principais, logo se transforma numa caminhada solitária que June é obrigada a fazer rumo ao Canadá. Utilizando como fio condutor o laço de amizade entre June e Moira, The Handmaid’s Tale desata os nós que a segurava e explora de forma mais clara os refugiados em um país que, mesmo desaprovando o regime vizinho, não faz nada de concreto para combatê-lo. Ao longo das três temporadas anteriores, a série deu poucas explicações a respeito da situação diplomática de Gilead e, agora, através de Mark Tuello, podemos entender o porquê que o resto do mundo não intervém naquela sociedade.
A produção do Hulu sempre deixou muito claro, mas, parafraseando June, homens fracos realmente fazem o mundo girar. Quase todos os personagens masculinos da série possuem pouco aprofundamento ou relevância emocional, com exceção do irreverente Joseph Lawrence que, desde que surgiu em cena, é uma incógnita muito difícil de ser lida. Mesmo que sejam ótimos personagens e importantíssimos para o andamento da trama, há pouca margem de interpretação para Nick Blaine, Fred Waterford e Luke Bankole. E se esperávamos por um defensor de mulheres na figura de Tuello, o tombo foi grande, já que o homem pareceu se compadecer mais com Serena Joy do que com suas vítimas.
E, por falar nela, a nova gravidinha de The Handmaid’s Tale sofre novamente com um mal incurável: sua personalidade dividida. Claro, a culpa não é de Serena, mas se torna extremamente cansativo assistir a personagem dar dois passos para frente e 20 passos para trás. O talento irrefutável de Yvonne Strahovski pode até ajudar a construir uma base sólida para sua vilã, mas suas idas e vindas indecisas em relação ao marido perderam o impacto com o passar do tempo. Oprimida, sim; opressora, indiscutivelmente.
Até quando está no Canadá, June não consegue se livrar de seu casal de algozes e, dessa vez, o fantasma da injustiça a assombra mais do que qualquer outra coisa. Já sabíamos que não seria fácil para a personagem superar as sequelas dos 7 anos destruídos em nome de Deus, mas seja pela força de Moss ou pela sagacidade da série, o que a quarta temporada entrega é impressionante. June Osborne está irada e exige justiça, nem que ela mesma tenha que buscar.
Claramente, não era isso que Moira e Luke esperavam quando se reencontraram com a ex-aia. Desde que desembarca na vida de refugiada, ela deixa claro que não abrirá mão de sua raiva – e quem tira a razão dela? The Handmaid’s Tale pode ter perdido a mão quando explorou em demasia o abuso de suas personagens, mas, nessa quarta temporada, parece que a série vem tentando se redimir ao se embrenhar mais fundo nas diversas formas que o trauma se manifesta.
Morno, o relacionamento da protagonista com Luke, que finalmente exige uma dose maior do ator O-T Fagbenle, mais serve para mostrar os reflexos na vida sexual de June do que para acrescentar em algo na narrativa fraca do marido. Fagbenle se esforça, mas é difícil conquistar personalidade para uma fatia de pão ofuscada pelas mulheres à sua volta. Em contrapartida, a verdadeira eletricidade surge com Moira, que é confrontada por uma pessoa bem diferente de quem um dia foi sua melhor amiga.
A June que nasceu em um quarto de hospital enquanto rezava incessantemente por uma cadavérica Ofmatthew não consegue suportar o cheiro da normalidade e, apesar das decisões e atitudes questionáveis, nos recusamos a sair do lado dela. Que ela tenha sua vingança. Que ela inale as cinzas de seus inquisidores. Assim como ela, como todas elas, estamos sedentos por sangue. E O Conto da Aia se aproveita disso para entregar aquela cena.
É ao som de You Don’t Own Me, de Lesley Gore, que o final do poderosíssimo episódio 10, O Bosque (The Wilderness), deixa sua marca no imaginário de The Handmaid’s Tale. Fred Waterford foi um monstro, um estuprador, um fraco. Nem o charme de Joseph Fiennes conseguiu imprimir algum tipo de humanidade naquele responsável por tirar tudo das mulheres que cruzavam seu caminho. Ele sempre pertenceu ao Muro, e foi sua tão querida Offred que o arrastou despedaçado, mutilado e apavorado para bem longe do Deus que justificava suas ações.
Catártica e corajosa, a quarta temporada da produção reconquistou os votantes da Academia e a queridinha The Handmaid’s Tale garantiu 21 indicações no Emmy 2021. Além da óbvia indicação de Elisabeth Moss em Melhor Atriz em Drama e da obra em Melhor Série de Drama, o elenco encheu as listas de Atuação Coadjuvante. Entre as atrizes, os nomes escolhidos foram Madeline Brewer com sua doce Janine; a insuperável Ann Dowd, que entrega em Tia Lydia a personagem mais complexa da série; Yvonne Strahovski como Serena e Samira Wiley, dona do carisma apaixonante de Moira.
O já vencedor Bradley Whitford e seu indecifrável Comandante Lawrence agora têm a companhia de O-T Fagbenle e Max Minghella na categoria de Melhor Ator Coadjuvante em Drama, mesmo que a diferença de profundidade entre os três seja gritante. Entre as atrizes convidadas, Alexis Bledel e Mckenna Grace também não deixaram Emily e Esther passarem despercebidas e se firmaram em Melhor Atriz Convidada em Drama. Drama para cá, drama para lá, o maior deles talvez seja a falta do nome de Elisabeth Moss em Direção.
Liz Garbus garantiu a sua fatia de indicação pela direção do último episódio da temporada, O Bosque, mas Moss, responsável por dirigir três dos dez episódios da série, ficou de fora. Sob sua tutela, O Cruzamento (The Crossing), Testemunho (Testimony) e Progresso (Progress) – terceiro, oitavo e nono, respectivamente – são especialmente intrigantes, mas não foram o suficiente para que a atriz fosse lembrada em outras categorias além de sua June e de sua produção. Além disso, o único lembrado em Melhor Roteiro em Drama foi Lar (Home), que conta com a assinatura de Yahlin Chang.
Agora, depois dessa sobrevida que abençoou The Handmaid’s Tale, resta orar para que o Deus dos cancelamentos faça o seu papel e finalize a série na já confirmada quinta temporada. Sair de Gilead revigorou uma trama que sofria com a falta de impacto e com uma crueldade excessiva que perdeu o papel de sensibilizar, acostumando o espectador com os horrores de uma sociedade dominada por homens medíocres. No entanto, optar por alongar ainda mais essa nova perspectiva pode terminar de enterrar a produção que abalou o Emmy 2017. Está na hora de deixar June Osborne em paz.