Jamily Rigonatto
Trazer figuras importantes diretamente do cenário político-social norte-americano para os holofotes dos palcos do audiovisual tem sido uma estratégia explorada pelos roteiristas e diretores da indústria cinematográfica. Seguindo a linha de produções como Mrs. América e Gaslit, The First Lady escolhe retratar os eventos de três presidências dos Estados Unidos pelo outro lado da moeda. Na antologia lançada em 2022 pela emissora Showtime, a Casa Branca abre os portões para visitas com anfitriãs que não poderiam ser mais ilustres.
Eleanor Roosevelt, Betty Ford e Michelle Obama são as damas que nos convidam a adentrar os bastidores de suas vidas. Em um novo ponto de vista, as personagens se eximem do peso de serem traduzidas pela simplicidade de existir como coadjuvantes da história estadunidense. Assim, no enredo assinado por Aaron Cooley, mostrar pouco dos governos de Franklin Roosevelt, Gerald Ford e Barack Obama, mas muito das perspectivas de suas esposas, é o maior propósito.
Com produção executiva da também protagonista Viola Davis, a narrativa aborda uma linha temporal múltipla com variações entre as épocas em que cada uma das primeiras-damas vive dentro do universo dos governantes. O foco é mostrar o contraste das personalidades, buscando respaldo em flashbacks curtos das juventudes das personagens. Além disso, há a inserção de elementos opressores, com o intuito de demonstrar o embate entre a força de seus ideais e a pressão social que as impacta, diante da importância da representação que exercem.
Apesar da nobreza no intuito de A Primeira-Dama (como a obra chegou no Brasil), não é necessário nem meio episódio para mostrar que algo está fora do lugar. Começando pelo destaque de Michelle Obama (Viola Davis) e a percepção de que pensar como quem tem o jogo ganho é a receita certa para perder. Ao longo da progressão da série, a ideia de misturar a força de uma figura tão conhecida e marcada por uma presença de tamanha singularidade como a de Michelle, a grandeza proporcionalmente original da ganhadora do Oscar, parece incompatível.
Mesmo com a atriz envolta por uma forte caracterização e um visível estudo dos trejeitos da ex-primeira-dama, ainda não conseguimos vê-la nas telas. Fica para o telespectador o resultado frustrante de algo teoricamente perfeito ruindo bem em frente às câmeras. A qualidade da atuação de Davis é inegável, mas seu grande empecilho é o frescor da memória da senhorita Obama nas nossas memórias – afinal, 2017 foi ontem. Dessa forma, assistir as cenas deixa para trás a sensação de comer um doce queimado, mesmo com todo o açúcar, o fundo continua amargo.
O ponto mais forte da presença de Michelle na produção está em suas interações com o abismo social criado pela racialidade e o peso de ser a primeira mulher negra a ocupar o lugar de primeira-dama. Testemunhar o medo, as ameaças e a segregação espalhada por todos os espaços nos quais ela adentrava faz com que seja possível sentir o desconforto de chegar como quem invade uma festa na surdina. O grande alívio é ver a figura resistindo ao enfrentar o presidente e o mundo pelo direito de continuar inteira em um país construído pelo genocídio do povo preto. Nos diálogos com o marido, interpretado por O-T Fagbenle, fica constatado que não há poder suficiente no mundo para comprar autenticidade.
A introdução das perspectivas de Eleanor Roosevelt (Gillian Anderson) pode ter sido outra pedra no caminho do desenvolvimento da Família Obama. Quando Franklin chega ao governo, a atmosfera estadunidense performa um verdadeiro apocalipse, já que sua primeira presidência sucede a quebra da bolsa de valores de Nova York em 1929. Esse momento caótico acaba tornando os problemas de Eleanor mais comoventes em comparação aos das outras protagonistas. O forte enfoque nas atitudes da personagem em relação ao meio social e em suas frequentes afirmações pela defesa da população em maior vulnerabilidade tiram o ar caricato e atribuem um aspecto sensivelmente humanizado.
Por isso, quando há transições entre os frames de Eleanor e Michelle, os contrastes se tornam ainda mais visíveis e incômodos. As narrativas não cumprem o papel de diferenciar as épocas sem sacrificar a uniformidade da história, fazendo com que até mesmo a Fotografia, comandada por Amir Mokri, perca em termos de continuidade. Essas rupturas também são evidenciadas pela presença das jovens primeiras-damas, viajar por tantos planos temporais tira, desnecessariamente, o ritmo da passagem dos 10 episódios da obra.
Ainda com a capacidade de identificação e empatia atribuída a Lady Roosevelt, a direção – responsabilidade de Ellen Burstyn – não consegue exprimir todo o potencial de Gillian. Assim, a representação é satisfatória, porém, fica aprisionada a uma monotonia tibia. Mostrando a falha de escolher tantos focos e não dar a devida atenção a nenhum deles, cada episódio de The First Lady se emaranha em mais labirintos que não levam a lugar algum.
Depois de tantos desacertos, Betty Ford (Michelle Pfeiffer) chega com a altivez de uma rainha. A primeira-dama do sucessor de Richard Nixon ganhou a interpretação de mais destaque na produção. Construída como uma mulher real do tipo que expõe suas fraquezas e vantagens, Pfeiffer conseguiu criar uma ligação sincera entre a ficção e a realidade. Muito desse feito pode ter sido ocasionado pela pouca pressão e liberdade na composição de Betty, que além de ser a menos popular entre as três personalidades, é também a menos explorada pela espetacularização midiática.
Mesmo tendo tudo para ser o tipo de série que aparece todos os anos como uma das favoritas do Oscar, The First Lady se perdeu nos cálculos. Entre tantos cenários bem feitos e investimento em caracterizações, a narrativa tenta agarrar mais do que consegue. Esses pequenos deslizes se tornam grandes quando falamos de uma primeira temporada, e acabam sendo os detalhes que distanciam uma obra digna de ocupar a presidência de um enredo esquecível.
Na premiação do Emmy 2022, a Academia de Televisão não deixou os pormenores passarem despercebidos e acabou indicando a série em apenas 3 categorias técnicas. Nas primeiras noites da premiação, ocorridas nos dias 3 e 4 de setembro deste ano, The First Lady concorria por Melhor Figurino de Época e Melhor Maquiagem de Época e/ou de Personagem (Não-Prostética) pelo episódio Vaso Rachado. A produção também estava no páreo pela estatueta de Melhor Penteado de Época e/ou de Personagem, pelo episódio Gangorra. Mesmo com a caracterização tendo sido um dos aspectos mais marcantes das cenas do trabalho audiovisual, não foi o suficiente para superar a pompa de Bridgeton ou a sensualidade de Pam & Tommy.
Não é como se sentar e assistir The First Lady fosse uma completa perda de tempo: ver mulheres que conseguem espaço para suas vozes ecoarem é sempre, de uma maneira ou de outra, um deleite. A infelicidade fica no desperdício ilustrado de tanto potencial, presenciar o sucesso de uma produção tão bem intencionada descendo pelo ralo parece injusto. Mas no fim, vale a pena dar uma chance para os pontos de vista de quem foi secundarizada a vida toda.
As primeiras-damas não representam todas as mulheres do mundo, seus privilégios as tornaram parte de algo à parte. Ainda assim, nos mais luxuosos corredores da Casa Branca, moram as essências do machismo e da misoginia. Eleanor, Betty e Michelle só nos mostram que os maridos e seus status de poder são verdadeiros acessórios de incentivo a uma sociedade de exclusão. Já não é segredo para ninguém que passou da hora daquela faixa presidencial ganhar uma dona.