Gaslit: 50 anos depois do escândalo Watergate, a política ainda é um homem branco

Foto da série Gaslit. Na imagem, o rosto da atriz Julia Roberts no papel de Martha Mitchell. A personagem tem pele branca com algumas rugas aparentes, seus cabelos são loiros e estão presos em um coque alto com topete na frente. O semblante do rosto é triste, com os olhos cheios de lágrimas. Ela veste um vestido de gola média que aparece só até a altura dos ombros e é coberto de brilhos e pequenos cristais.
Em seu ano de estreia, Gaslit recebeu 4 indicações ao Emmy, mas passou longe de brilhar nas duas primeiras noites da premiação (Foto: STARZ)

Jamily Rigonatto 

Na década de 1970, a política estadunidense foi marcada por burburinhos e manipulação. Durante a reeleição de Richard Nixon, o Partido Republicano tinha a vitória nas mãos com uma larga escala de vantagem, mas ainda assim resolveu usar de artifícios que favorecessem seu representante. A ideia era invadir os escritórios do Partido Democrata no Complexo de Edifícios de Watergate, e grampear telefones para captar informações confidenciais, além de plantar fotos e montagens comprometedoras que seriam usadas  como uma espécie de chantagem para garantir o sucesso na corrida eleitoral.

A falta de planejamento fez com que tudo fosse por água abaixo e os 5 invasores acabaram presos e marcados pela mídia como parte do “Escândalo de Watergate”. Na época, uma investigação de quase dois anos conduzida por jornalistas do Washington Post levou a história adiante e constatou a ligação entre o esquema de espionagem e Nixon, que não teve muitas escolhas e renunciou ao cargo. Desde então, a narrativa foi contada por diversas obras, sendo a principal delas a do repórter Bob Woodward, no livro Todos os Homens do Presidente.  

Em todas as versões mais populares dessa história, fica apagada a importância de Martha Mitchell e suas desconfianças antecipadas sobre o jogo sujo do Comitê de Campanha de Nixon. Chegando para um rápida e assertiva troca de protagonistas, Gaslit foi a grande aposta da emissora STARZ. A minissérie estreou em abril de 2022 e, sob o nome de um tipo de manipulação psicológica que faz uma pessoa achar que estar delirando, mostra que Martha era muita coisa, mas com certeza não beirava a loucura. 

Gaslit é inspirada pela primeira temporada do podcast Slow Burn de Leon Neyfakh (Foto: STARZ)

Interpretando Martha, Julia Roberts remonta uma socialite fofoqueira com excelência e sensibilidade. Se historicamente a personagem era conhecida como a esposa do procurador John Mitchell, em Gaslit ela se mostra com muito mais complexidade. Constantemente rodeada por câmeras, repórteres e entrevistas, ela era para o mundo um poço de futilidade e é essa imagem que permite que sua sagacidade seja pouco levada a sério, e em alguns momentos vista até como inexistente pelas figuras ao seu redor. 

É na pele de Sean Penn que John Mitchell ganha vida. Vida essa tão bem construída que o ator é apresentado com uma aparência irreconhecível. O advogado, além de representar o Partido Republicano, teve participação direta no acobertamento do crime, e carrega o conservadorismo misógino a cada gesto. A narrativa faz questão de deixar claro que são esses valores e a concepção fechada do personagem que não o permitem perceber que olhos e ouvidos muitas vezes dormem ao lado. 

As atuações e a capacidade de seus intérpretes de transformar o que originalmente eram coadjuvantes em excelentes protagonistas sustentam a narrativa. É inegável que o roteiro de Robbie Pickering e Sam Esmail tem uma proposta genial, desenvolvida de forma muito coesa para os poucos 8 episódios da produção, mas acaba sendo o tipo de história com a qual nem todo público se identifica. Assim, se você não souber previamente sobre o que se trata o Escândalo de Watergate, engolir o enredo pode ser mais desgastante do que o esperado. 

O trabalho de caracterização de Julia Roberts teve penteado inspirado em programa televisivo The Dinah Show, no qual Martha foi convidada em meados de 1970 (Foto: STARZ)

Seguindo a linha de inversão de papéis, outros personagens que passam batidos em exposições mais convencionais do evento político ganham sua dose de destaque em Gaslit. Logo no primeiro episódio, Desejo, John Dean (Dan Stevens) e Mo Dean (Betty Gilpin) contracenam um dos diálogos mais importantes e significativos da série. Em um encontro inicial, os dois percebem que os valores dela, alinhados aos democratas, se contrapõem aos dele e sua relação com os republicanos. Esse conflito não se insere por acaso, mas funciona para constituir um presságio do que ancora toda a narrativa: contraste e poder. 

A exploração do controle em Gaslit é um dos seus grandes pontos altos. Colocando a ideia de domínio sempre relacionada ao autoritarismo masculino, o enredo explica o apagamento histórico de Martha sem precisar de muito. Isso se prova pela forma como John se comporta, fazendo ligações, deixando documentos e estudando a defesa de Nixon dentro de casa, sem sequer considerar a esposa como um ser capaz de entender no que ele estava envolvido. 

Quanto ao contraste, este se mostra de forma incisiva e crítica na medida certa. Toda a atmosfera demonstra a desigualdade social pelo qual o país passava, pequenos detalhes e frames curtos são capazes de entregar a invisibilidade de todos os retratos comunitários que fugiam dos parâmetros elitistas. A violência contra moradores de rua, a falta de  saneamento das ruas e o abuso de poder das autoridades policiais são alguns dos encaixes pontuais que denunciam o abismo entre os escritórios políticos e o povo. 

Nos maniqueísmos do homem, Gaslit mostra o quanto não há limites para ambição. Focando principalmente nas atitudes grotescas e absurdas nas quais John Dean e John Mitchell se apoiavam em nome da reeleição de Nixon, cada novo evento tirava todos os pequenos rastros de humanidade dos dois. Esse movimento contribuiu para que, trilhando o caminho contrário, Martha se mostrasse cada vez mais cheia de verdade, sentimento e insegurança. A caracterização do casal Mitchell é um grande bônus na construção desse contraste. Enquanto ele é envolto por grandes quantidades de maquiagem e camadas plásticas, com um ar que chega ao caricato, ela tem uma aparência marcada pela naturalidade.

As relações de violência pelas quais a dama do ministro é submetida também reforçam essa diferença entre os dois. Exposta à vulnerabilidade, agressão e ameaças, ela resiste como alguém cujos machucados são reais. Em um trabalho muito bem feito pela Fotografia, conduzida por Larkin Seiple, os minimalismos das feições e olhares da personagem ganham grandeza para que o público seja capaz de sentir um pouco do que ela sente. 

Essas questões não puderam deixar de serem notadas pela Academia de Televisão, que indicou Gaslit a quatro categorias da premiação de Artes Criativas do Emmy 2022. Entre as nominações da minissérie, estavam Melhor Maquiagem Prostética e Melhor Mixagem de Som em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme, ambos pelo episódio Últimos Dias, Melhor Edição de Som em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme ou Especial, por O Ano do Rato, e Melhor Fotografia em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme, para Seiple pelo capítulo Desejo. A série acabou não sendo contemplada com nenhuma estatueta das técnicas, distribuídas na cerimônia dos dias 3 e 4 de setembro, já que a caracterização de Sean Penn não foi suficiente para bater o surrealismo da quarta temporada de Stranger Things.

46 anos depois da morte da verdadeira Martha Mitchell para um câncer de mieloma múltiplo, o retrato de Gaslit parece ter chegado tarde demais (Foto: STARZ)

Pelas ruínas da América, Gaslit resiste em perspectivas. Nas novas vozes pelas quais somos guiados ao evento de Watergate, a visceralidade com certeza é uma das grandes protagonistas. Apesar disso, a série não perde em adicionar crítica e humor no ponto exato e consegue se sair bem com uma narrativa que, na medida do possível, flui bem. Afinal, às vezes sair do morno não é suficiente para alcançar a ebulição. 

Em suma, o maior feito da produção fica na sua relação com a atualidade e o grande tapa na cara é saber que, em meio século, as únicas mudanças ficam nos números de identidade. Um mundo comandado por homens brancos cisgênero, com ideais conservadores e olhos que só se abrem para dinheiro nunca foram uma novidade e ainda parecem ser o tipo de história que se renova por mais temporadas do que deveria. Bom mesmo seria se os últimos episódios políticos fossem um grande gaslighting que distorceu nossa percepção. 

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