Vitor Evangelista
Rotulada como uma comédia que “nos faz sentir bem”, é uma reviravolta e tanto que o ano dois de Ted Lasso decida concluir sua trama futebolística em notas tão amargas. “É ‘O Império Contra-Ataca’”, definiu boa parte do elenco sobre a segunda temporada. Com isso, o público pôde pescar que questões sobre paternidade, rancor e traição fossem tomar parte na tela, visto que tudo isso ocorreu no longínquo episódio cinco de Guerra nas Estrelas. Mas o baque foi mais forte que o prometido.
Com dois capítulos a mais que no ano inicial, a Apple TV+ quis engrandecer seu carro-chefe, esticando o tempo de tela de seu premiado elenco e dando ao público mais minutos semanais. Episódios beirando quase uma hora de rodagem, fizeram a construção de Ted Lasso mudar para melhor. O luto que dá pontapé na estreia guia Dani Rojas (Cristo Fernández) até a sala da doutora Sharon Niles (Sarah Niles), a psicóloga contratada pelo time, que via na figura do treinador a positividade tóxica que ele tanto penou para fugir no ano passado.
O tropo narrativo de inserir a terapia em cena é batido, mas a produção encontra uma maneira de marcar a presença da clínica fora do círculo de adoração pelo técnico. Sharon é uma mulher negra em meio a um elenco majoritariamente branco, calma, reservada e nem um pouco impressionada pelo magnetismo de Ted, incomodando o protagonista como nunca antes.
Se a primeira temporada constrói a narrativa de um “excluído” ganhando a atenção e o respeito de um bando de ingleses mal-humorados, agora Ted Lasso (Jason Sudeikis) é querido por todos ao seu redor. Em time que está ganhando não se mexe, mas os criadores sabiam que, para a série se firmar como mais que um sucesso de estreia, era preciso cavar algumas faltas. Para crescer, Ted Lasso necessitava nos fazer chorar (e não apenas de alegria, como se acostumou a fazer em 2020).
A virada do claro para o escuro, passagem da Nova Esperança para o Império Contra-Ataca, vem anestesiada. Dando margem para que o time de coadjuvantes germine sua própria história para longe do bigodudo, a série encontra espaço para celebrar o Natal em agosto, dar as boas-vindas a um mártir e até enterrar um cachorro. Em momentos ora reconfortantes e ora incômodos, o ano 2 parecia preencher seus capítulos com nada além de frases de almofada, abraços e perdões.
A tática do “falso 9”, proposta por Nate (Nick Mohammed) em um dos momentos mais derradeiros do ano, se camufla para além das quatro linhas do gramado e penetra a série de TV que o abarca. Em pequenas fagulhas de tensão e esquisitice, uma troca de olhares e uma bufada, nascia um descontentamento que, em breve, entraria em combustão. Escondendo as cartas, Lasso cozinhou um melodrama poderoso, que viria a ser servido no decisivo The Signal, quando Ted passa por um ataque de pânico e deixa o campo de jogo.
A partir daí, a temporada avança no épico das estrelas que o elenco tanto prometeu em entrevistas de divulgação e até no tapete do Emmy 2021. Uma temporada que vai de Carol of the Bells e Rainbow para The Signal, transicionando de amor, carinho, sentimento natalino e compreensão, para colocar em xeque a estabilidade do homem mais solícito do mundo, e o faz com agilidade e cuidado, mostra que tem muito a dizer.
Como Lasso exemplifica uma porção de vezes em seus inúmeros bordões e conselhos, a vida não é simples e, às vezes, apenas falar dos problemas ajuda, já que ninguém tem solução para tudo. O carrancudo Roy Kent (Brett Goldstein) enfim aceita condições óbvias e mostra que hétero tem salvação. Mais sensível e ouvinte do que antes, o ex-meia continua sendo o namorado perfeito, mas a que custo? Até que ponto um relacionamento se sustenta para além do amor de uma parte pela outra?
A primeira temporada de Ted Lasso intoxicava os funcionários e jogadores do AFC Richmond com o ar simpático e utópico do personagem-título. A segunda temporada mostra como essas pessoas impactadas por ele vivem suas vidas depois de terem-no conhecido e tê-lo como amigo. Se a dúvida do ano um era a condição de existência de uma pessoa genuinamente boa, o ano dois expande essa pergunta: como o nosso comportamento pode impactar àqueles que nos cercam?
Honestidade, confiança e segurança são alguns dos resultados de viver e trabalhar com Ted, e esses atributos acabam preenchendo os arcos individuais de todos os coadjuvantes. Rebecca (Hannah Waddingham) fortalece seu vínculo incomparável com Keeley (Juno Temple), demonstra respeito e gratidão à figura de Higgins (Jeremy Swift) e ainda engata em um romance nada óbvio com uma figura importante do vestiário.
Em No Weddings and a Funeral, a personagem é confrontada por uma série de lembranças e costumes, retorna ao quarto de infância e percebe como os anos em um casamento ruim a impactaram negativamente. Ela confabula com as amigas e a mãe (Harriet Walter), rendendo cenas memoráveis de uma união e sororidade que fazem bonito na série que, em teoria, é sobre futebol (spoiler: Ted Lasso não é nadinha sobre isso).
Quando canta na cerimônia, Rebecca passa de atordoada, para triste, para arrasada e depois realizada, em conforto. Quem a alavanca ao último pedestal é o próprio Ted, que mostra na prática como é benéfico ter uma rede de apoio. A chefona da primeira temporada nunca daria abertura para um comportamento desse praxe, mas a dona do clube que virou amiga do seu treinador o faz num piscar de olhos. Além disso, a performance de Waddingham segura toda essa barra, deslizando com gentileza e precisão por cada uma das voláteis emoções expressas no velório.
Esse que, embora não se centre em Jamie (Phil Dunster), ajuda na consumação da honestidade que Lasso tanto exalou no vestiário do clube. De estrela de reality show a atacante contratado para o desdém da equipe, Tartt se redime como ninguém (e sem a série nos forçar a sentir qualquer emoção fabricada). O personagem é esmagado pela pressão familiar e pela ideia canalha que mostrou ser desde o início, mas, novamente, graças ao estilo “slow-burn”, que desenvolve os conflitos da temporada de forma mais devagar, o saldo final positiva sua persona. Quem diria que a porra do Jamie Tartt viraria gente?
Quem diria que Higgins conseguiria soar mais fofinho? Quem diria que Roy abraçaria alguém que não fosse Keeley? Quem diria que Keeley colocaria para fora sentimentos ruins, mas existentes? Juno Temple faz mágica em cada cena que aparece, exprimindo a emoção mais genuína e humana que alguém pode experienciar: a compreensão. Keeley, que já era alguém além de especial na temporada 1, ganha sustância o suficiente para voar com as próprias asas ao fim de Inverting the Pyramid of Success, o agridoce adeus do ano 2.
Ainda no escritório da gerência, Higgins ganha um pedaço carnudo de episódio na hora do Natal, o que possibilita que o público entenda sua dinâmica familiar e se apaixone ainda mais pelo homem que vive na sombra de Rebecca. Perceptível, porém, é que Ted Lasso insiste em entregar “momentos caridosos” para figuras secundárias, como o próprio Higgins e Sam (Toheeb Jimoh), mas se recusa a aprofundar temas mais sensíveis ou plurais de suas vidas.
Depois de vasculhar cada canto da personalidade de Ted, Rebecca, Roy e cia, é esperado que o texto faça o mesmo para a galera que não tem o nome estampado nos primeiros segundos da abertura. Existe uma diferença entre decidir aguardar a exploração de coadjuvantes e simplesmente definir que eles virem papagaios altruístas e não pessoas de verdade (ou o mais próximo disso que uma sitcom sobre futebol e a vida da Apple possa criar).
Sam, um dos pilares do novo ano, é muito mais um ideal e uma concepção de bondade do que uma pessoa de carne e osso, com dilemas e prazeres. Quando lhe é oferecido um acordo que o tiraria da zona de conforto, o jogador flerta com a dúvida e a série finge que vai se dedicar aos seus pensamentos e sua singularidade, mas a decisão é rápida demais para ser à altura de alguém como ele.
Pelo arco passado, Sam foi definido como um respiro frente às caracterizações racistas e datadas de personagens africanos, mas esse ano sua evolução mostra uma problemática tão incômoda quanto. Ele é carinhoso, zeloso e o homem perfeito, mas não é nada além disso. Sem a camisa 24 e o aplicativo de paquera, a série ainda não se importou em desnudar Sam e escrever situações que nos revelem sua essência, sua rotina e seus fantasmas. A esperança reside no gancho para 2022, que tem tudo para nos colocar na Nigéria e, finalmente, poder amar o atacante com tudo que temos direito.
Quem sai do tratamento usual é o treinador Beard (Brendan Hunt), figura misteriosa e silenciosa, que foi muito beneficiado pela extensão do pacote de episódios proposto pela Apple. Quando o time de roteiristas já estava avançado no processo criativo da temporada, os dois capítulos extras acabaram ganhando característica de fillers, isso é, não se adequavam por completo à narrativa principal, funcionando como momentos extra.
O primeiro é o Natal, singelo, afável, gentil. O outro vem na segunda parte da season e atende pelo nome de Beard After Hours. A homenagem do título é para o longa-metragem de 1985 dirigido por Martin Scorsese (usado de inspiração também no disco de 2020 de The Weeknd), e mostra o personagem de Brendan Hunt metido em todas as confusões imagináveis depois do Richmond tomar um chocolate do Manchester City.
Protagonizado apenas por Hunt, que passa de boates a flertes a fugas e a uma situação de quase-morte, o episódio toma boas decisões, mas soa desajustado frente aos formatos que Ted Lasso costuma adotar. Além de ser o holofote ideal para que Beard receba as glórias (e volte a ser indicado às premiações), o quase spin-off do assistente exercita a ideia criativa que as sitcoms parecem ter abandonado nos últimos anos.
Community era mestre em inventar moda e girar sua história em cento e oitenta para encontrar maneiras diferentes de fazer Televisão. Modern Family flertava com inovações, também, e não há como esquecer do imortal episódio todo “em telas”, que foi firmado em uma parceria, adivinhem, com a Apple. Fora isso, a TV tem se adequado e muito a uma construção mais simples e direta de suas comédias de situação.
E não se enganem, Ted Lasso é uma perfeita sitcom. Não só isso, Ted Lasso é a série mais “TV aberta” a ser transmitida pelo streaming. A vibe jocosa, os personagens amáveis e a trama descomplicada evidenciam um fator que pode ter desagradado um público que viu a temporada 1 de uma só vez e agora experienciou o lançamento semanal dos capítulos inéditos.
Quando estreou em 2020, Ted Lasso passou batida. A coisa mudou quando a galera começou a maratonar e se apaixonar, criando assim uma expectativa enorme para o retorno. E ele veio em período de votação do Emmy, em doses homeopáticas de bom humor, chororô e futebol, por doze sextas-feiras. Como boa sitcom, Ted Lasso triunfa quando mostra em tela seus personagens vivendo e lidando com a vida. Essa é a essência de uma boa comédia, nos colocar no banco do passageiro das aventuras dessas pessoas “idealizadas”.
Por isso, arcos de personagens como Rebecca, Sam, Keeley e até do próprio Nate (já chegaremos nele) soaram planos e sem picos de adrenalina, tensão e dúvida. Era óbvio que o assistente tomaria a decisão que tomou, mas assistir por uma dúzia de semanas sua mente chegar a essa conclusão pode ser estafante para o mesmo público que assistiu, num curto período por causa da maratona, o time se apaixonar por Lasso na temporada um.
O que volta para a questão primordial do streaming e como esse advento transformou drasticamente a maneira de consumir TV, porque sim, a maneira de assistir a segunda temporada de Ted Lasso afeta e muito sua opinião sobre o produto final. Para alguém que se acostumou com a exibição semanal de sitcoms de sucesso por anos e anos, o saldo é verdinho. Mas para quem procura causa e efeito emergenciais nos arcos narrativos, a fornada de 2021 pode não ter sido tão proveitosa quanto deveria.
Fato é que o formato semanal de Ted Lasso auxiliou na força da decisão de Nate ao final do ano dois. Desde o começo da temporada sentindo-se abatido e diminuído, ele passa por maus bocados e precisa se reestruturar por completo. O trabalho de Nick Mohammed eleva o material textual que lhe é entregue, ao passo que o ator executa todas as deixas para que o público o enoje e o despreze, ao mesmo tempo em que entende sua posição de revolta (por mais que nunca se coloque ao seu lado). Pequenos e atenciosos detalhes, que vão de construções cênicas até significados grandiosos por parte de suas ações inconsequentes, mostram o cuidado que os roteiristas de Ted Lasso têm com sua obra.
Obra que tem a promessa de ser concluída logo no ano que vem, ao fim da vindoura e já confirmada terceira temporada. Se o sucesso não falar mais alto que o plano inicial, é bem provável que Lasso aposente as chuteiras na prorrogação. E a produção muito se beneficiaria disso. Produções menores costumam calibrar os momentos mais apetitosos, sem a chance de perder a mão. Como isca, o último vislumbre que a série nos dá em 2021 é mortal.
Mas essa é a única maneira de abraçar aquela promessa do Império Contra-Ataca. É também a saída mais satisfatória para a série que foi cantada aos quatro ventos como uma comédia “para ficar feliz”. Luke perdeu a mão e Vader revelou o teste de DNA. Agora é hora da recolhida, de se preparar para a batalha e cruzar os dedos para que o retorno do Jedi de Jason Sudeikis seja tão memorável e gratificante quanto o de George Lucas.