Pedro Gabriel
O sentido do viver é umas das questões mais antigas do ser humano. Por que estou aqui nesse mundo? Qual o meu propósito na Terra? Essas perguntas rodeiam a nova produção dos estúdios Pixar, Soul. Dirigido por Pete Docter (Monstros S.A, 2001 e Up! Altas Aventuras, 2009), e co-dirigido por Kemp Powers, seguimos a vida de Joe Gardner (Jamie Foxx), um professor substituto de música de uma escola, com o sonho de ser um músico profissional de jazz.
Quando Joe finalmente consegue uma vaga em um quarteto de uma grande musicista de jazz, Dorothea Williams (Angela Bassett), um acidente acontece, e ele morre. Com isso, a história de Soul percorre a tentativa do homem de voltar ao corpo, ao mesmo tempo que ele tenta ajudar uma jovem alma chamada 22 (Tina Fey) a conseguir um passe para a Terra.
A premissa do filme não é inovadora. Mas ela é bem utilizada pela Pixar em suas produções, onde o protagonista é levado para outro local, precisando percorrer aventuras para retornar ao seu lar. Mas, como em outros longas, Soul consegue entregar uma obra delicada, complexa e profunda, acertando mais uma vez na sua fórmula.
O jazz como fio condutor
Em entrevistas sobre o filme, Docter contou como foi escolhido tanto o personagem, quanto o fundo que a história teria. Foi quando surgiu a ideia de um professor de música, que é apaixonado por jazz. E com o estilo musical, surge o primeiro protagonista afrodescendente da Pixar, e o primeiro co-diretor negro de uma animação do estúdio, Kemp Powers.
Não apenas o personagem principal, mas toda a Nova Iorque criada em Soul mostra essa representatividade de diversas etnias, mas focando na comunidade negra norte-americana. E a principal delas, e que permeia nos ouvidos de quem assiste, é o jazz, um estilo que está intrinsicamente conectada com a história dos negros nos Estados Unidos.
A trilha sonora original, composta por Trent Reznor, Atticus Ross e Jon Batiste, leva a entender o porquê Joe ama tanto tal estilo, e torna todo o clima do filme mais intenso. Ela dita o ritmo dinâmico da produção, que não enrola em seus 101 minutos. Tudo tem o tempo necessário, sem “barrigas” no meio da narrativa.
O antes e o depois da vida
Docter constrói um mundo muito rico em Soul. Primeiro é apresentada uma visão do Além-Vida, um lugar onde as almas vão quando morrem. Após a negação de Joe de sua morte, ele cai em um universo completamente diferente, o Pré-Vida. Novamente, os diretores conseguem realizar o feito de criar um mundo complexo e organizado, com uma estética de empresa, para ambientar suas histórias, como feito em Divertida Mente.
O contraponto feito entre esses dois estágios é construído de uma forma certeira: no Além-Vida, as almas, que já batalharam muito durante sua existência, esperam em uma esteira, no meio da escuridão, que as leva de encontro a uma luz branca, aquele é o seu descanso. Já no Pré-Vida, o ambiente toma outras proporções. Nesse local, que é colorido e “cheio de vida”, as almas criam suas personalidades.
Através de tutores, elas são inspiradas e levadas a achar um propósito, que dará um passe para a Terra. Para encarnar, pulam em um buraco que as leva para o planeta, dando esse salto de fé que é viver. Todo esse mundo é gerenciado por entidades, que no Pré-Vida são chamadas de Jerry, ou Zé na tradução brasileira (tendo a participação na versão original de Alice Braga como Jerry A). Enquanto no Além-Vida, Terry (Rachel House) é responsável pela contagem e gerenciamento de almas desencarnadas, e é ele quem vai atrás de Joe.
Além desses locais, existe um terceiro, chamado de Viagem pelos personagens. Um plano que fica entre o mundo dos vivos e dos mortos. As pessoas que ali se encontram, estão em uma espécie de transe por algo que gostam, ou estão perdidas em suas ansiedades e inseguranças.
Tanto a parte criativa do mundo de Soul, quanto sua estética são impecáveis. É certificada com o selo Pixar de qualidade, e funciona muito bem com o que o filme se propõe a mostrar. O roteiro de Pete Docter, Mike Jones e Kemp Powers é simplificado e complexo ao mesmo tempo, sem subjugar a inteligência de seus espectadores, sendo compreensível tanto para adultos, quanto para crianças.
As camadas dos personagens
Nessa realidade construída por Docter e Powers, a história se desenrola com os dois personagens muito bem desenvolvidos. De um lado temos Joe, um cara que está na sua meia idade, e que passou a vida inteira esperando o seu momento. Ele tem uma vida pacata, sem grandes emoções, adiando o seu viver até que seu sonho seja realizado, e agora terá que inspirar uma alma a querer viver, para que ele consiga voltar. Em contraponto, temos a 22, uma alma que está no Pré-Vida há muitos anos, e que não consegue achar uma motivação para querer viver.
Muito do sucesso de Soul se deve a química maravilhosa entre os dois personagens principais. Os atores dão um show de atuação, tanto no original, quanto na dublagem brasileira (Jorge Lucas e Carol Valença dublam Joe e 22 aqui no Brasil), passando a imagem proposta pelo filme da dupla. Os dois são muito carismáticos, e logo nos primeiros segundos que estão em tela, já torcemos para que consigam o que querem. Ainda que os destinos traçados sejam previsíveis, a jornada é contada de uma forma envolvente, criando um laço rapidamente com sua história e motivações.
À medida que o filme passa, você sente cada vez mais as camadas dos personagens. Joe, que era gentil, sonhador e inspirador, aflora seu egoísmo e suas decepções, deixando sua ambição tomar conta de tudo. Enquanto isso, 22, a alma desinteressada e sarcástica, prova da vida e mostra um lado mais sensível e aberto a novas experiências, mas esbarra com suas inseguranças em relação à vida na Terra.
Mas não são apenas os personagens principais as estrelas do filme. Quando voltamos os olhos para o elenco coadjuvante, os melhores momentos são tirados deles. A mãe, relutante quanto ao sonho do filho; o barbeiro que mostra que nem sempre nossos sonhos tornam-se realidade, mas que isso não é o fim do mundo; a aluna que demonstra que mesmo que lutemos contra o que gostamos, isso sempre estará internalizado em nós. Cada personagem, cada cena, cada momento, tudo enriquece os protagonistas, como também quem assiste e encontra essas pessoas nas suas vidas.
A edição de Kevin Nolting traz um bom equilíbrio entre o cômico e o dramático, com uma montagem que poderia ser cansativa, se o roteiro não fizesse o espectador criar a vontade de ver aquilo em tela. Isso ocorre nos cortes entre fala e acontecimento, como na representação dos tutores da 22, que são figuras históricas, ou nas quebras das viagens das pessoas.
Mas também é visto no uso dos flashbacks do Joe, onde podemos ver a vida como ele próprio enxerga. Os diálogos bem escritos, que tocam na alma de quem assiste, mesclam com a estética, montagem e música, e criam esse material esplêndido.
Não será surpresa encontrar ele entre os indicados aos grandes prêmios para o cinema, incluindo o Oscar. As apostas para a categoria de Melhor Animação são fortíssimas. Mas Soul também está sendo cotada para as categorias de Melhor Trilha Sonora, Melhor Roteiro Original, e até Melhor Filme.
O fim inevitável de Soul
Soul se mostra como a real e mais pura alma da Pixar. Profundo e belíssimo, o filme entrega uma história cativante, com uma técnica impecável. Mesmo com desfechos clichês, ele surpreende quem o assiste, levando às lágrimas e em uma constante de reflexões sobre a nossa própria vida.
Será que estou vivendo, ou estou adiando minha vida? E se algo grandioso já aconteceu, será que estou realmente feliz ou a procura de algo que já estou dentro? A única certeza tirada é que Soul não é um filme para ser digerido rapidamente, e que ele transcende a tela com suas questões.