Ao som de jazz, Soul mostra que é a alma da Pixar

Em primeiro plano está o protagonista, Joe Gardner, em sua forma humana. Ele é negro, usa óculos, um chapéu, um casaco preto e sorri olhando para frente. Ao fundo, há uma escadaria feita com teclas de piano, levando ao letreiro do filme “Soul”, com a representação astral de Joe acenando ao lado de 22, em cima da letra “L”. O fundo da imagem é azul marinho.
O filme tinha data de estreia para julho, mas devido a pandemia do covid-19, teve sua data adiada para 25 de dezembro, com lançamento direto no Disney+ (Foto: Reprodução)

Pedro Gabriel

O sentido do viver é umas das questões mais antigas do ser humano. Por que estou aqui nesse mundo? Qual o meu propósito na Terra? Essas perguntas rodeiam a nova produção dos estúdios Pixar, Soul. Dirigido por Pete Docter (Monstros S.A, 2001 e Up! Altas Aventuras, 2009), e co-dirigido por Kemp Powers, seguimos a vida de Joe Gardner (Jamie Foxx), um professor substituto de música de uma escola, com o sonho de ser um músico profissional de jazz. 

Quando Joe finalmente consegue uma vaga em um quarteto de uma grande musicista de jazz, Dorothea Williams (Angela Bassett), um acidente acontece, e ele morre. Com isso, a história de Soul percorre a tentativa do homem de voltar ao corpo, ao mesmo tempo que ele tenta ajudar uma jovem alma chamada 22 (Tina Fey) a conseguir um passe para a Terra.

A premissa do filme não é inovadora. Mas ela é bem utilizada pela Pixar em suas produções, onde o protagonista é levado para outro local, precisando percorrer aventuras para retornar ao seu lar. Mas, como em outros longas, Soul consegue entregar uma obra delicada, complexa e profunda, acertando mais uma vez na sua fórmula.

Joe Gardner em sua forma astral, segurando um pedaço de pizza quase transparente, e mostrando a 22. Joe demonstra alegria em apresentar a pizza para 22, que se mostra desinteressada. Ao fundo, diversas vitrines de comidas, todas quase transparentes.
No decorrer do filme, vemos a representação de grandes figuras históricas, como Maria Antonieta, Madre Teresa e Abraham Lincoln (Foto: Reprodução)

O jazz como fio condutor

Em entrevistas sobre o filme, Docter contou como foi escolhido tanto o personagem, quanto o fundo que a história teria. Foi quando surgiu a ideia de um professor de música, que é apaixonado por jazz. E com o estilo musical, surge o primeiro protagonista afrodescendente da Pixar, e o primeiro co-diretor negro de uma animação do estúdio, Kemp Powers. 

Não apenas o personagem principal, mas toda a Nova Iorque criada em Soul mostra essa representatividade de diversas etnias, mas focando na comunidade negra norte-americana. E a principal delas, e que permeia nos ouvidos de quem assiste, é o jazz, um estilo que está intrinsicamente conectada com a história dos negros nos Estados Unidos

A trilha sonora original, composta por Trent Reznor, Atticus Ross e Jon Batiste, leva a entender o porquê Joe ama tanto tal estilo, e torna todo o clima do filme mais intenso. Ela dita o ritmo dinâmico da produção, que não enrola em seus 101 minutos. Tudo tem o tempo necessário, sem “barrigas” no meio da narrativa.

Quarteto de Dorothea Williams tocando no palco de um clube de jazz, com o fundo vermelho, feito de cortinas. Na esquerda está Joe, tocando piano com os olhos fechados. Ao lado temos Dorothea Williams, em pé tocando saxofone, com os cabelos cacheados soltos e um vestido de estampa de zebra. Após, temos Miho tocando um violoncelo. Ela usa chapéu, com um cabelo liso cobrindo os olhos, uma camisa social azul e um suspensório. Por fim, Curley na bateria. Ele sorri olhando para o lado de Joe. Curley é careca, com uma barba rala e usa uma camiseta preta.
Ao escolher qual seria a profissão do protagonista, o estúdio queria algo que o público pudesse torcer; a escolha foi um cientista, mas foi descartada por não ser uma vida tão pura quanto a de um músico (Foto: Reprodução)

O antes e o depois da vida

Docter constrói um mundo muito rico em Soul. Primeiro é apresentada uma visão do Além-Vida, um lugar onde as almas vão quando morrem. Após a negação de Joe de sua morte, ele cai em um universo completamente diferente, o Pré-Vida. Novamente, os diretores conseguem realizar o feito de criar um mundo complexo e organizado, com uma estética de empresa, para ambientar suas histórias, como feito em Divertida Mente

O contraponto feito entre esses dois estágios é construído de uma forma certeira: no Além-Vida, as almas, que já batalharam muito durante sua existência, esperam em uma esteira, no meio da escuridão, que as leva de encontro a uma luz branca, aquele é o seu descanso. Já no Pré-Vida, o ambiente toma outras proporções. Nesse local, que é colorido e “cheio de vida”, as almas criam suas personalidades. 

Através de tutores, elas são inspiradas e levadas a achar um propósito, que dará um passe para a Terra. Para encarnar, pulam em um buraco que as leva para o planeta, dando esse salto de fé que é viver. Todo esse mundo é gerenciado por entidades, que no Pré-Vida são chamadas de Jerry, ou Zé na tradução brasileira (tendo a participação na versão original de Alice Braga como Jerry A). Enquanto no Além-Vida, Terry (Rachel House) é responsável pela contagem e gerenciamento de almas desencarnadas, e é ele quem vai atrás de Joe.

Imagem no Pré-Vida, com dois Zés olhando para 22. Ambos são altos, e com linhas brancas formando um contorno humanóide, com uma parte esbranquiçada e a outra rosada, e estão sorrindo. Em baixo temos Terry, que é pequeno, e também tem um formato humanóide feito por linhas brancas, tendo um lado de seu corpo esbranquiçado e o outro azulado. Terry apresenta uma expressão de desconfiança. No centro da imagem, temos 22 segurando algo em sua mão, olhando para ela, e Joe com uma expressão de desentendimento. Ambos em sua forma astral. Ao fundo, diversas almas bebês.
“Sou a combinação de todos os campos quantizados do universo, me apresento nessa forma para que os humanos possam me ver, pode me chamar de Zé” (Foto: Reprodução)

Além desses locais, existe um terceiro, chamado de Viagem pelos personagens. Um plano que fica entre o mundo dos vivos e dos mortos. As pessoas que ali se encontram, estão em uma espécie de transe por algo que gostam, ou estão perdidas em suas ansiedades e inseguranças. 

Tanto a parte criativa do mundo de Soul, quanto sua estética são impecáveis. É certificada com o selo Pixar de qualidade, e funciona muito bem com o que o filme se propõe a mostrar. O roteiro de Pete Docter, Mike Jones e Kemp Powers é simplificado e complexo ao mesmo tempo, sem subjugar a inteligência de seus espectadores, sendo compreensível tanto para adultos, quanto para crianças.

As camadas dos personagens

Nessa realidade construída por Docter e Powers, a história se desenrola com os dois personagens muito bem desenvolvidos. De um lado temos Joe, um cara que está na sua meia idade, e que passou a vida inteira esperando o seu momento. Ele tem uma vida pacata, sem grandes emoções, adiando o seu viver até que seu sonho seja realizado, e agora terá que inspirar uma alma a querer viver, para que ele consiga voltar. Em contraponto, temos a 22, uma alma que está no Pré-Vida há muitos anos, e que não consegue achar uma motivação para querer viver.

Muito do sucesso de Soul se deve a química maravilhosa entre os dois personagens principais. Os atores dão um show de atuação, tanto no original, quanto na dublagem brasileira (Jorge Lucas e Carol Valença dublam Joe e 22 aqui no Brasil), passando a imagem proposta pelo filme da dupla. Os dois são muito carismáticos, e logo nos primeiros segundos que estão em tela, já torcemos para que consigam o que querem. Ainda que os destinos traçados sejam previsíveis, a jornada é contada de uma forma envolvente, criando um laço rapidamente com sua história e motivações. 

Imagem do Pré-Vida, com 22 jogando um terço branco no rosto da versão astral de Madre Teresa de Calcutá. 22 está com um olhar de divertimento na ação. Madre Tereza está de olhos fechados, com uma roupa de freira, rezando um terço.
“Eu tenho compaixão e devoção a todos… todos menos a você, eu te odeio!” (Foto Reprodução)

À medida que o filme passa, você sente cada vez mais as camadas dos personagens. Joe, que era gentil, sonhador e inspirador, aflora seu egoísmo e suas decepções, deixando sua ambição tomar conta de tudo. Enquanto isso, 22, a alma desinteressada e sarcástica, prova da vida e mostra um lado mais sensível e aberto a novas experiências, mas esbarra com suas inseguranças em relação à vida na Terra. 

Mas não são apenas os personagens principais as estrelas do filme. Quando voltamos os olhos para o elenco coadjuvante, os melhores momentos são tirados deles. A mãe, relutante quanto ao sonho do filho; o barbeiro que mostra que nem sempre nossos sonhos tornam-se realidade, mas que isso não é o fim do mundo; a aluna que demonstra que mesmo que lutemos contra o que gostamos, isso sempre estará internalizado em nós. Cada personagem, cada cena, cada momento, tudo enriquece os protagonistas, como também quem assiste e encontra essas pessoas nas suas vidas.

Joe sentado em uma cadeira de cortar cabelo, olhando feliz para baixo com um pirulito na boca. No seu colo, um gato malhado, olhando empolgado para Dez, o barbeiro. Dez, um cara grandalhão, com uma barba grande e tatuagens no braço, está com uma camisa polo e um avental, segurando uma máquina de cortar cabelo, próxima a cabeça de Joe. Ao fundo, espelhos e quadros cobrem uma parede de tijolos à vista.
Para trazer personagens mais vivos, Kemp Powers decidiu colocar algumas vivenciais suas nos personagens, visitando barbearias, alfaiates, escolas e clubes de jazz (Foto: Reprodução)

A edição de Kevin Nolting traz um bom equilíbrio entre o cômico e o dramático, com uma montagem que poderia ser cansativa, se o roteiro não fizesse o espectador criar a vontade de ver aquilo em tela. Isso ocorre nos cortes entre fala e acontecimento, como na representação dos tutores da 22, que são figuras históricas, ou nas quebras das viagens das pessoas. 

Mas também é visto no uso dos flashbacks do Joe, onde podemos ver a vida como ele próprio enxerga. Os diálogos bem escritos, que tocam na alma de quem assiste, mesclam com a estética, montagem e música, e criam esse material esplêndido. 

Não será surpresa encontrar ele entre os indicados aos grandes prêmios para o cinema, incluindo o Oscar. As apostas para a categoria de Melhor Animação são fortíssimas. Mas Soul também está sendo cotada para as categorias de Melhor Trilha Sonora, Melhor Roteiro Original, e até Melhor Filme. 

O fim inevitável de Soul

Soul se mostra como a real e mais pura alma da Pixar. Profundo e belíssimo, o filme entrega uma história cativante, com uma técnica impecável. Mesmo com desfechos clichês, ele surpreende quem o assiste, levando às lágrimas e em uma constante de reflexões sobre a nossa própria vida. 

Será que estou vivendo, ou estou adiando minha vida? E se algo grandioso já aconteceu, será que estou realmente feliz ou a procura de algo que já estou dentro? A única certeza tirada é que Soul não é um filme para ser digerido rapidamente, e que ele transcende a tela com suas questões.

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