Vitor Evangelista
Ano Novo, Nova Ru. Não contente em apenas estrear a 13ª temporada de RuPaul’s Drag Race junto da virada para 2021, Mama Ru fez a sorte operar à seu favor: com 16 episódios, um especial dos bastidores e mais dublagens do que nunca, o seriado manteve o público vidrado na TV toda sexta-feira, até que, finalmente, Symone da House of Avalon fosse coroada a Nova Super Estrela Drag da América.
Ela já havia nos avisado logo de cara, “não deixe o sabor suave te enganar, baby”. Dito e feito, a drag queen de Arkansas botou para quebrar, dominando desafios, passarelas e marcando a história do programa. Foram escolhas ousadas, revigorantes e extremamente particulares. Partindo do durag traduzido em um ‘train’ (uma longa cauda), até as referências à RuPaul no vestidinho preto e o visual ‘foxy lady’, Symone não deixou espaço para ninguém.
Symone, entretanto, não seguiu uma caminhada impecável até a Coroa e os cem mil dólares, muito pelo contrário. Quando ela era boa, era um triunfo que só, rendendo o sonhado (e até então amaldiçoado) recorde de 4 vitórias. Mas, nos momentos de dúvida e deslize, Symone dublou em 2 ocasiões nas Piores da Semana, mais vezes do que qualquer outra vencedora passada do programa.
Suas principais críticas eram simples: a residente de L.A. se prendia nos próprios pensamentos, escondendo o potencial avassalador da persona Symone, muitas vezes diminuída pela insegurança de Reggie, o jovem negro, afeminado e excluído por toda a vida antes de encontrar a arte drag. Ademais, o visual da queen, que bebe em uma porção de fontes dos anos 90, poderia desagradar pela ‘falta de marca pessoal’, se não fosse tão escasso o numero de referências múltiplas para jovens negros e gays.
Ponto já debatido em Drag Race UK na passarela do Ícone Gay do Reino Unido, quando Tayce e Asttina, duas drags negras, acabaram referenciando Naomi Campbell pela falta de figuras representativas para elas enquanto cresciam. Symone é uma amálgama de uma variedade de inspirações e estilos, e, mais importante ainda, é modelo para todos que se parecem com ela e nunca assistiram alguém assim na TV.
Quando o assunto é representatividade, a protagonista da 13ª temporada de RuPaul’s Drag Race é Gottmik. Primeiro homem trans a competir no show de RuPaul, Mik desafiou os estigmas antigos das concepções da arte drag, era um homem criando ilusões femininas, era um ‘ele’ constantemente referido como ‘ela’, era a candidata perfeita para ostentar o título de Next Drag Superstar, não fosse a qualidade de estrela de Symone.
E Drag Race nos enganou direitinho, estrategicamente desfocando Symone na segunda metade da temporada, e levitando Gottmik numa narrativa de campeã. A começar por suas significativas vitórias no Baile das Bolsas e no Snatch Game, duas das Joias do Infinito de Drag Race. Quem ganha esses episódios inevitavelmente chega à Final com chances reais de levantar o caneco (ou nesse caso, a Coroa e o cetro).
A própria RuPaul desenvolveu um carinho afável pela competidora, interessada em ouvir suas vivências e extrair o melhor de seu potencial de ouro. Mik passou por leves percalços logo no início da Corrida, quando se sentiu acuada por ser uma pessoa trans em um programa que nunca havia tido alguém trans-masculino no elenco. O medo durou pouco, a partir do momento que ela percebeu que não tinha a obrigação de representar toda uma comunidade, Mik se libertou. E foi sendo assim, contando somente sua história e construindo sua narrativa, que a artista se divertiu.
Sem aterrissar nas Piores da Semana, ela serviu looks atemporais (o alfinete na cabeça sangrando ficará marcado para sempre na mente dos jovens espectadores de RuPaul’s Drag Race) e surpreendeu na comédia. Muito mais que uma queen maquiadora, ela matou a competição imitando uma verossímil Paris Hilton no Snatch Game e arrasou no Roast das Miss Simpatias. O melhor de tudo foi sua leveza enquanto ganhava e recebia os louros. Gottmik saiu sem a Coroa mas venceu em autoconfiança, e deve chegar ao All Stars pegando fogo.
Se Symone oscilou entre altos e baixos, e Gottmik deslizou se divertindo pela competição, Rosé começou sua jornada em Drag Race um bocado surpresa. A única das finalistas que perdeu a dublagem inicial, sendo mandada para o Porkchop Lounge, a drag queen de Nova York demorou a se provar, tanto a si mesma quanto aos jurados. Outra que, depois que encontrou a métrica correta, apenas ascendeu até à Final, Rosé era ‘perfeita’ demais para roubar a Coroa para si.
Ela dublou 3 vezes (mas nunca esteve no Bottom) e perdeu cada uma delas, venceu 3 desafios, não teve uma única performance ruim ao longo do programa, mas não tinha a chama que nasceu em cada uma das 12 vencedoras antigas de Drag Race. Nem a narrativa ‘do lixo ao luxo’ de Rosé se firmou, visto que logicamente as escolhas de RuPaul na estreia foram deliberativas, distribuindo drags boas e ruins entre os grupos (isso explica a ida de Lala Ri e Olivia Lux para o grupo das vencedoras). Uma boa temporada precisa igualar suas competições e preparar pré-concepções.
Quando RuPaul mandou Kandy Muse embora depois de perder a dublagem para Symone, e logo voltou atrás, salvando a nova-iorquina, ela carimbou o passaporte de Muse para a Final. Os Double Shantays (quando ninguém é eliminado) viraram rotina, e significam que Mama Ru definiu suas finalistas de antemão. Vejamos o histórico: Kameron e Eureka na temporada 10, Yvie e Brooke Lynn na 11 e Symone e Kandy na 13. O caso de Kandy Muse é mais interessante ainda, revivendo uma narrativa de favoritismo de Drag Race que RuPaul manteve adormecida por alguns anos. Todos sabiam que Kandy não ganharia a temporada, mas sua desenvoltura e poder de narração alimentaram na drag o chamariz de atenção necessário para que ela chegasse onde chegou.
Veja bem, Muse fracassou em desafios de música (ConDragulations, Social Media: The Unverified Rusical), em desafios de comédia (Snatch Game, Henny, I Shrunk The Drag Queens) e também nas passarelas (o visual dos bolsos é o pior look do ano) e mesmo assim chegou ao Top 2 da temporada. Isso foi possível graças a uma única letra do termo definidor das vencedoras: o Carisma de C.U.N.T. foi tatuado na testa de Kandy e toda vez que RuPaul espiava seu desajeitado estilo drag virar a esquina da passarela, era apenas esse C que ela enxergava.
Kandy, em instância alguma, poderia ser eliminada da 13ª temporada de Drag Race antes de seu fim. Sua participação ficou mais fácil de digerir quando Olivia Lux, a clara candidata à quarta vaga na Final, passou a ser criticada pelas mesmas ações que fizeram-na chegar onde chegou: sua leveza, sorriso e pinta de Miss Simpatia. Lux venceu 2 Desafios seguidos, estrategicamente selecionados para criar seu momentum, logo aniquilado pelas performances repetitivas.
A pianista de Nova York com maneirismos de Mariah é uma ‘baby queen’, trabalhando como drag há poucos anos, e ainda sem encontrar a maturidade e o senso de identidade necessários para vencer Drag Race. Com a popularização massiva do reality, cada vez mais são inscritas competidoras jovens e com pouco tempo de experiência no ramo, resultando em performances aquém, e que, num ecossistema nocivo como o da Corrida das Loucas, necessita de tempo para modelagem e sustentação. Drag queen, para vencer os 100 mil dólares, precisa ser madura.
Isso na maioria das vezes, mas nem sempre. Puxando, mais uma vez, o histórico recente, Aquaria não tinha a maturidade artística de Eureka, mas sustentava suficiente noção de si mesma, entregando visuais e comédia, sem esforço algum. O mesmo para Yvie Oddly, fiel à marca de ‘esquisita’, e agora Symone, insegura em momentos, mas constantemente bufante e assertiva. Sy tem espaço para crescimento, é óbvio, mas seu nível atual foi o suficiente para vencer e crescer longe de nossos televisores, como as vencedoras das temporadas 10 e 11 antes dela.
A 13ª temporada de Drag Race revelou ainda mais o caráter ‘produzido’ do reality, com os executivos puxando palitinhos por trás das câmeras, moldando suas próprias narrativas e o encaminhamento da Corrida. Foi comum ver as drags sendo criticadas na deliberação dos jurados, mas nunca ouvindo os comentários, tudo para que não houvesse mudança e elas pudessem ser eliminadas por conta disso.
Utica era chamada a atenção pelas caras e bocas, Tina Burner abusava de uma única (e horrenda) paleta de cores e Denali voava abaixo do radar de quem julgava, semana após semana. Mesmo a veterana Tamisha Iman era constantemente apontada como ‘distante e travada’ nas coreografias, propositalmente editada dessa forma, para que ouvisse um amargo Sashay Away contra sua arquirrival Kandy Muse.
Tamisha foi a luz da 13ª temporada. Originalmente escalada para a décima segunda, ela foi diagnosticada com câncer no mesmo fim de semana que recebeu o telefonema do reality. A solução foi se tratar e voltar curada para competir no ciclo seguinte, entretanto, ainda não estando 100% recuperada, a mãe da Dinastia Iman performou aquém do que a própria esperava. Vivendo com uma bolsa de colostomia no estômago, ela não abriu mão de usar espartilhos, dançar e honrar sua carreira e legado.
A maneira como Tamisha foi tratada na temporada expôs o pouco caso que a série faz com drag queens mais velhas. Iman, com cinquenta anos de idade, 3 filhos biológicos e uma Dinastia de queens sob seu nome, foi a terceira eliminada em uma temporada com competidoras pouco merecedoras de durarem mais que a veterana. A ordem de eliminações contribuiu para o marasmo da competição, quando Denali escreveu com batom no espelho ensebado, pudemos enxergar com clareza que RuPaul prefere sabotar drags e trazê-las de volta no All Stars ao invés de explorar um potencial completo na rodagem comum.
E essa foi uma longa rodagem. Por mais de 4 meses no ar, a temporada demorou a eliminar suas competidoras, esperando o quarto episódio para mandar a atrasada (mas belíssima) Kahmora Hall embora. O chacoalhão no formato comum e a inserção da dublagem divisiva na estreia soaram interessantes no trailer, mas ter 6 introduções repetidas foi mais cansativo do que deveria.
As limitações da pandemia renderam um episódio especial, exibido no breve hiato após Kandy ser salva. Foi uma manobra ciente do ódio gerado pela decisão de RuPaul e que colocou panos quentes na situação, mostrando os processos de criação da temporada na era do covid-19 e os protocolos seguidos pelas competidoras. Corona Can’t Keep A Good Queen Down se misturou entre os bastidores, vídeos caseiros das drags e entrevistas sóbrias, fotografadas com um filtro terroso e nada favorável ao visual delas. Repare nos lábios laranjas dos takes de Gottmik.
A Reunião, assim como no ano passado, foi em formato virtual. Nada instigante e divertido de acompanhar, o episódio dividiu as drags na ordem de eliminação, fazendo chamadas em duplas com perguntas dos fãs e uma forçação de intimidade. A parte boa desse bolo de rolo foi a criação de clipes para cada uma das queens, dublando tanto músicas originais quanto covers, e mostrando ao mundo o poder da arte drag nesses tempos sombrios. Não há nada melhor do que ser entretido por 5 Joey Jays fantasiados de NSYNC e uma porção de drags nova-iorquinas vestidas de Tina Burner, simplesmente não tem preço.
A Final, o décimo sexto episódio da temporada (ufa!), voltou ao formato pós-Sasha Velour, em um grande palco e com as queens dando mortal e tirando coelho da peruca para impressionar uma sorridente RuPaul. O capítulo abriu com a própria dona do império em uma rotina de coreografia acompanhada de dançarinos sarados. Mostrando que ainda pode fazer o que bem der na sua cabeça, RuPaul inaugurou um Baile da Final, com cada uma das finalistas servindo 3 visuais doidos, malucos, de explodir miolos e que custaram mais que 1 ano de aluguel aqui no bairro de Cesar de Souza.
Gottmik deu o nome. Começando por um visual inspirado em Hellraiser (e que a fez raspar a cabeça para polir ainda mais a composição), ela seguiu com um David Bowie de calças longas em vermelho e finalizou com o melhor roupa de uma Final de RuPaul’s Drag Race desde o retorno de Violet Chachki na 8ª temporada. Kandy Muse deve ter mordido as costas de raiva por suceder Mik, servindo um poético vestido grafado com BLM (Black Lives Matter), um tubinho vermelho cheio de acessórios e uma composição escura, usando penas de pavão para dar o tchan.
Rosé referenciou Minha Bela Dama, recriou raízes carmins (mas desde quando uma árvore vermelha traduz bem Rosé?) e honrou o legado escocês da sua família. Symone, para variar, destruiu a competição. Ela iniciou o Baile com uma peruca que desafia as leis da Física, prosseguiu com um vestido todo formado por unhas postiças vermelhas e finalizou sua jornada artística em Drag Race se dividindo ao meio, do lado esquerdo era uma guerreira e do direito, uma deusa. Nada poderia ter traduzido melhor a rainha do que essa dicotomia do belo e do bruto. Symone se pôs à prova a temporada toda, colocando-se para baixo, mas subiu e ascendeu.
Antes da definição da vitória da temporada, vimos vislumbres das participantes: Kahmora apareceu deslumbrante, Joey Jay continua uma incógnita, alguém divertido, mas com o senso estético de uma maçã. Tamisha Iman é a dona do mundo e nós apenas vivemos nele. Lala Ri ostentou sua fantasia Dora Milaje e nos fez sentir saudades de seu poder narrativo nos confessionários. Elliott With 2 Ts apareceu em um cenário chique, ainda provando seu fator básico na composição da temporada. Sem contar a escolha de escalar dançarinos negros em seu clipe do Reunited, abafando os casos de falas racistas. Elliott passou de perseguida para esquecida pela produção, ocupando a vaga de alguém mais merecedor de se manter na Corrida.
Denali serviu um visual desértico, marcando o coração de quem assistiu a temporada como a promessa que foi sabotada cedo demais (todos sabiam que Olivia merecia ouvir o Sashay Away no terrível Desafio do Makeover). Tina Burner nasceu com promessa mas morreu na praia, talvez intimidada pelo triunfo de drags mais novas e menos experienciadas que ela, agora nos resta esperar o All Stars. Utica continuou exibindo seus dotes artísticos, mas depois dos vexames no Snatch Game e no problemático Roast, ninguém ficou com dó de sua partida.
Olivia Lux serviu carisma, o problema é que à essa altura, o sorriso da diva educada não tinha o mesmo efeito de três meses atrás. O elenco coroou Lala Ri a Miss Simpatia da temporada, marcando a segunda vez na história que tanto a Vencedora quanto a Congeniality são drag queens negras. Em adição ao título e aos 10 mil dólares, Lala havia vencido o Golden Boot Award na semana anterior, pelo pior visual do ano. O ‘vestido’ criado com as bolsas grudadas foi um desrespeito às normas do programa, visto que ela foi a única que não construiu uma roupa, e deveria ter sido eliminada no momento que pisou na passarela, sem a oportunidade de dublar.
Seguindo a onda do movimento #FreeBritney, RuPaul escolheu 3 músicas de Spears para a Grande Final. A primeira dublagem, entre Kandy e Rosé, reafirmou o cansaço do formato de Dublar pela Coroa. O número foi engessado, cheio de revelações anticlimáticas, e sem a energia necessária para que o espetáculo se sustentasse. Mik e Symone se enfrentaram na sequência, novamente, sem inspiração ou criatividade. Agora é só tirar o casaco, jogar peruca para o alto e cair no chão girando.
Sasha Velour inaugurou o show de horrores dos Reveals (as revelações) na 9ª temporada, fazendo de seu número de So Emotional um farol de inspiração para todas que vieram depois. Entretanto, olhando para quem venceu a Coroa no passado, é possível notar um padrão nas ‘revelações’. Fora Velour, que elevou o conceito unindo a letra da música com a coreografia, as demais campeãs escolheram minúcias que potencializam a canção, e não apenas usar 3 casacos e despir-se enquanto uma Britney Spears sussurra de forma sensual.
Aquaria soltou fogos no refrão de Bang Bang, afinal o momento pedia uma devida explosão. Yvie Oddly escondeu um adorno na peça da cabeça, rodando à beira da glória e enfim, alcançando-a. Jaida Essence Hall abriu as asas, declarando-se uma Sobrevivente, com S maiúsculo mesmo. Coube a Symone soltar confetes estáticos ao implorar para que fosse agarrada até que o mundo acabasse.
A sorte da 13ª temporada de RuPaul’s Drag Race veio à tona um pouco antes da merecida vitória de Symone. Mostrando que o histórico importa sim, senhora, RuPaul coroou a competidora que melhor se saiu na Corrida das Loucas, a competidora com a melhor narrativa de perda e ganho e a drag queen com qualidade de estrelato, logo apontada no episódio 2. O número de Lucky, antes da Final, já dava as cartas: “Você está com tanta sorte esta noite, porque eu estou te dando o show que você quer”. Com Symone campeã, não há qualquer outro show no mundo que eu prefira ver.