The Essence of Beauty (Foto: Reprodução)
Vitor Evangelista
A décima segunda temporada do reality de drag queens sofreu um bocado. A começar pela polêmica de Sherry Pie, acusada de assédio, e sua desclassificação do programa, o novo ano enfrentou a pandemia mundial que impediu a gravação com público dos episódios finais. O isolamento se refletiu em soluções inventivas e conferências à distância. Munido de propaganda eleitoral e do hit American, RuPaul Charles coroou Jaida Essence Hall, uma rainha negra e que celebra a cultura de concursos de beleza. Num momento tão crítico dos Estados Unidos, a escolha de Mama Ru evidencia o papel da arte no meio das revoltas e reivindicações: celebrar performers negros e evidenciar seu carisma, singularidade, coragem e talento.
Discussões sobre racismo nas deliberações de RuPaul não são de agora. Em All Stars, competição paralela à principal com rainhas retornando para ganhar a coroa, das 5 vencedoras, apenas 1 é negra. No ano passado, na quarta edição do reality, as regras foram quebradas e duas drags foram campeãs. Enquanto Trinity The Tuck, branca, representava a voz dos patrocinadores do show, Monét X Change, queen negra, foi o clamor do público, cansado da falta de diversidade no Hall da Fama. É certo que essa decisão não se trata de cotas ou favoritismo, mas sim de celebração da cultura afro americana, de suas raízes e manifestações. E a temporada 12 entoou a mesma nota.
A favorita logo de cara era Gigi Goode. Rainha branca e fashion de 21 anos, que exalava beleza e polidez. Seu visual impecável e pose de modelo chamaram atenção tanto do público quanto dos jurados. Gigi acumulou quatro vitórias nos desafios, um feito histórico no programa, alcançado apenas três vezes em quase 12 anos de história. Quando Goode se afogou em desconfiança nos números de improviso e comédia, uma força da natureza surgiu: Jaida Essence Hall. A queen de 33 anos se mostrou consistente e talentosa ao passo que a competição avançava semana a semana. Jaida colocou três vitórias no bolso e chegou à final com um melhor ‘momento’ que suas competidoras, já que as múltiplas vitórias de Gigi foram na primeira metade da temporada, e Crystal Methyd (a outra finalista) não era tão forte assim.
Gigi Goode, Gigi Greate, Gigi Amazinge: mesmo perdendo a coroa, a queen quebrou uma série de recordes e colocou seu nome na história do programa (Foto: Reprodução)
O elenco de 13 queens (que no fim foram 12) esboçava uma onda diferente da arte drag. Artistas cômicas não deram as caras, deixando espaço para queens fashion, da velha guarda e também as modernas. Jan sendo a epítome dessa leva. Sem sobrenome, a competidora exibia uma gama de talentos mas deixou ser engolida por autossabotagem e foi embora antes da hora. Essas partidas prematuras e as questionáveis escolhas da apresentadora RuPaul foram marcantes nesse décimo segundo ano. Rainhas promissoras foram eliminadas do programa, tudo para manter na corrida aquelas mais básicas e que correspondiam a arquétipos já vistos antes em Drag Race.
Participantes como Dahlia Sin, Rock M. Sakura e a exótica Nicky Doll ouviram seu Sashay Away cedo demais, guardando promessas para futuras inserções no spin-off All Stars. Assim como a peculiar Aiden Zhane, que partiu deixando no ar a sensação de promessa. Os lip syncs (dublar para permanecer no show) pecaram em fôlego e inventividade. Algo que RuPaul’s Drag Race solidificou no mainstream foram as piruetas e revelações durante as dublagens. Todos os espacates e pulos parecem mais apresentações olímpicas do que a arte drag. Alguns anos atrás, a ex-competidora Jasmine Masters ressaltou a maneira como o programa de TV criou essa camada em volta da comunidade drag e suas manifestações, e os malefícios disso.
Entre os jurados convidados, quem merece todo o destaque é Nicki Minaj, com comentários cirúrgicos e críticas construtivas (Foto: Reprodução)
E, se tratando de um reality show que está no ar por mais de uma década, Drag Race necessita de narrativas dentro de suas temporadas. Quando Sherry Pie foi desclassificada e banida da Reunião e da Final, o primeiro episódio já havia sido exibido. Entretanto, a estreia foi dividida em duas partes e Sherry só aparecia no segundo capítulo. Nesse momento, a equipe criativa do seriado optou por não cortar por completo a competidora da tela. Isso criou uma narrativa confusa quanto aos desfiles (alguns mostrados, outros não), cenas no confessionário (todas cortadas) e a chegada da queen na final. Sem qualquer direcionamento para as câmeras, a série exibia avisos ao fim de cada capítulo reafirmando a situação de desclassificação, mas existia um vácuo no miolo do show. Com Sherry inativa, ficamos sem entender como a season foi moldada e finalizada.
Na ausência de brigas ou rixas entre rainhas, a 12ª temporada não conseguiu narrar nada. Não houveram histórias de superação ou queda, nenhum arco redentivo ou momento de arrepiar os cabelos, tão frequentes na herstory do programa. Jackie Cox apresentava consecutivamente visuais fracos, mas era mantida por discutir religião e sexualidade, até sua figura desgastar ao máximo. A ótima Widow Von’du aterrissou no Bottom 2 algumas vezes até ser mandada pra casa sem justificativa alguma. Até mesmo o Double Shantay (quando ninguém vai embora) soou gratuito. Heidi N Closet foi outra competidora básica e dependente de um humor escrachado e pobre que durou mais que quem realmente interessava e acrescentava algo à cultura drag. Sua escolha como Miss Simpatia apenas atesta a errônea manobra de dar mais espaço a uma queen sem nada a oferecer além da segunda linha. Ao menos agora não ouviremos mais seu horrendo assobio.
Nessa bagunça, quem mais cresceu foi Crystal Methyd. A princípio reservada, a rainha do Missouri ganhou força ouvindo as críticas dos jurados e as incorporando em sua narrativa. Seu grande momento veio no desafio do Makeover, quando as queens transformaram fãs em membros de sua família drag. Se baseando na Vila Sésamo, Methyd criou um look único na história do programa. Na verdade, as arriscadas escolhas estéticas da rainha apenas denotaram seu tato para a moda e para a arte que performa. Como dito na passarela do episódio 12, existe um número limitado de queens que entregaram essa interpretação de drag, e Crystal é corajosa ao fazê-lo. Esse senso destemido pagou bem ao levá-la até a final e, mesmo perdendo para Jaida, fincou a bandeira de uma drag ímpar chegando tão perto da coroa.
Crystal Methyd criou uma estética e se manteve fiel à um estilo de drag não visto antes no programa (Foto: Reprodução)
Os melhores episódios foram os que figuravam produções musicais. As canções (e performances) de I’m That Bitch, You Don’t Know Me, Madonna: The Rusical e o Rumix em Viva Drag Vegas tentaram salvar a monotonia da temporada, escassa de desafios de design, com o Ball Ball (vencido merecidamente por Gigi) sendo o único. Até mesmo o desgastado Snatch Game não foi interessante. Aliás, o desafio de imitar as celebridades já está envolto nessa cápsula de irrelevância fazem alguns anos. A má distribuição de vitórias entre as queens também contribuiu para a sensação de maré morta no decorrer do ano. A solução talvez seja um makeover no seriado, repensar decisões engessadas, criar novas regras e viradas que surpreendam os espectadores acomodados. Os primeiros capítulos sem sashay away foram interessantes, mas a inventividade morreu ali.
Falando em invenções, RuPaul enfrentou o pepino da pandemia mundial, impedindo as gravações da Reunião e da Final no clássico teatro de Los Angeles. A saída foi abraçar a tecnologia e promover os encontros virtuais. A começar pelo episódio 13, Alone Together, onde as queens cantaram, debocharam da desclassificação de Sherry (nunca diretamente) e lavaram a roupa suja da temporada, que não passava de duas meias e uma calcinha. O clássico desafio do reading, onde elas jogam shade e riem uma das outras, foi um fiasco na temporada e ganhou um novo respiro na Reunião, mesmo com a fala imprópria e insensível de Widow a respeito do criminoso R. Kelly. Dividindo espaço na tela, as queens não criaram momentos marcantes nem impressionaram com deslumbrantes looks como de costume nas outras temporadas. Mas, considerando o contexto e cenário, a mensagem de positividade e união passada foi de bom tamanho.
A Final foi movimentada com cinco lip syncs, uma porção de looks inusitados e a terna homenagem à Jacqueline Wilson, produtora do programa que faleceu ano passado. O episódio passeou pela trajetória do top 3, sabendo os momentos-chave para emocionar o espectador. Gigi Goode agradeceu à mãe, designer que confecciona a maioria de suas roupas e chorou lembrando da figura não-receptiva do pai. Crystal Methyd era só alegria assistindo a família celebrando a arte e conquistas do filho. Mas foi Jaida Essence Hall que tomou o momento para si. A começar pelas declarações do irmão e do pai, a imagem da falecida avó da queen apareceu na tela, ao lado de RuPaul e sua máscara. Os olhos de Jaida marejaram à medida que ela lembrou da vó, sua influência e os momentos que viveram juntos, assistindo filmes clássicos que acabaram moldando sua persona drag de agora. Um fecho poético para o caminho que a ‘Essência da Beleza’ percorreu até ali, contra todas as possibilidades, batendo de frente com Gigi Goode.
Pela primeira vez na história, tanto a Miss Simpatia quanto a Vencedora da Temporada são queens negras, Heidi N Closet e Jaida Essence Hall (Foto: Reprodução)
As dublagens do episódio sofreram pela falta de contato. Tanto do público com as performers, como também das três rainhas entre si. Bring Back My Girls, faixa da própria RuPaul, abriu alas com um close-up nas participantes, que dublaram usando os olhos e a boca como adereços de cena. Após o morno momento, cada queen performou sozinha, em casa, uma música de sua escolha. Crystal Methyd exibiu o extraordinário e inusitado numa criação de cenário infantil on acid, Gigi Goode investiu numa estética de videoclipes e saldou mais positivamente e Jaida Essence Hall colocou seu empenho na performance em si, abrindo mão de um cenário elaborado ou mensagem maior. RuPaul, tentando surpreender, manteve as três no páreo para a última e decisiva dublagem mas, à essa altura, qualquer decisão de Mama Ru soava previsível e desinteressante.
O número final, ao som de Survivor, das Destiny’s Child, expressou com exatidão o sentimento da temporada 12 de RuPaul’s Drag Race. Sem destaques ou momentos de tirar o fôlego, mesmo os pulos de Jaida e a anticlimática revelação de Gigi não acenderam a faísca. Crystal parecia à parte, reconhecendo que não merecia dublar naquele momento. A música terminou, Ru fez suspense para enfim anunciar a vitória de Essence Hall. Importante relembrar que as reações não são completamente genuínas, visto que múltiplas coroações são gravadas, a fim de evitar vazamentos. Porém, foi revelado o emocionante vídeo do momento que elas descobrem ao vivo quem levou o título.
Jaida Essence Hall se tornou a segunda pageant queen (rainha de concurso de beleza) a vencer Drag Race, depois de Tyra Sanchez, na temporada 2. Essa coroação é um marco para a comunidade negra e queer, agora tendo uma representante atual e em atividade (Sanchez está aposentada) para quem admirar. Gigi Goode perder o título de America’s Next Drag Superstar vai desagradar fãs, porém o arquétipo de fashion queen, branca e magra já venceu essa programa antes (lembremos de Violet Chachki e Aquaria). Agora, pela terceira temporada consecutiva, depois de Yvie Oddly e Monét X Change, RuPaul coroa um artista negro com seu cheque de 100 mil dólares e todo o prestígio que vem na bagagem. Não sabemos se isso veio apenas pelas discussões sobre a falta de diversidade no hall de vencedoras, o que sabemos é que essas manobras e decisões muito mais beneficiam a arte drag do que o contrário. E assistiremos felizes a história ser feita.
Parabéns pelo artigo. Muito bem tecido.