Ana Júlia Trevisan
“Eu não quero mais saber de desamor”: Liniker abre Remonta, seu primeiro disco, lançado em 2016, sendo categórica e exteriorizando seu pedido de ‘basta!’. A cantora araraquarense de, na época, apenas 21 anos, não estava sozinha nessa viagem imersiva e sentimentalista. É ao lado da banda Caramelows, que contava com a voz de Renata Éssis, o contrabaixo elétrico de Rafael Barone, a guitarra de William Zaharanszki, a bateria de Péricles Zuanon, o trompete Márcio Bortoloti, as teclas de Fernando Travassos, as percussões acústicas de Marja Lenski e (ufa!) o saxofone de Éder Araújo; que Liniker dá luz às suas composições. O amor visceral é usado como a substância vital na construção do trabalho que transformou a artista numa das maiores representantes da dita Nova MPB.
A primeira aparição de Liniker e os Caramelows aconteceu em 2015. O trabalho que colocou a banda no radar de muitos brasileiros foi o EP Cru. Contando com três músicas, o trabalho deu uma palinha das emoções que transbordavam no coração da letrista Liniker. A sinceridade de suas composições fez dela uma das maiores revelações daquele ano. Seu deleite sentimental e suas experiências amorosas formam a ogiva que desemboca no intrínseco Remonta. O título do disco é verbo, é ato, é o reparo das feridas irremediáveis.
O processo de cura de antigas feridas necessita de uma volta ao passado. É entender que o certo pode ser turbulento e reconhecer cada uma de suas dores. Entre a ferida, o sangue e a aceitação, Liniker deu a mão a seu eu de 16 anos, e retornou à árdua tarefa de processar dúvidas e sentimentos. O trabalho começa com uma Intro que já ambienta o ouvinte no cenário arraigado que é criado para Remonta. A sequência é dominada pela faixa-título que narra o processo que a cantora está encarando sem medo nem amarras. Liniker não está enfrentando nada fácil, muito menos simples, está lidando com uma dor que atravessa e encara isso com sobriedade, e também com o bom humor de quem acredita que o pior já passou.
Liniker, enquanto eu-lírico, tinha todos os motivos do mundo para chutar o balde e sair gritando ‘inferno’ mas, escolheu manter o tom apaixonado, independente da história por trás da canção. Remonta vai além da intensidade romântica, Remonta é potência! Muito do que é transbordado nas músicas jazzísticas representa a vivência da cantora. A melhor parte do disco? Não tem rancor envolvido. É tudo encontro e desacerto nos altos e baixos da montanha-russa de sentimentos humanos, e a artista consegue transformar cada ferida, das abertas às cicatrizadas, em poesia. Sem Nome, Mas Com Endereço fala sobre momentos, enquanto Tua fala sobre sensações, e é nessa passagem ótica da existência sentida por vários ângulos e de maneiras mudáveis que Remonta se torna um álbum com a alcunha de imersivo e memorável.
No quesito sonoridade, a black music tem forte presença no disco. Um dos pilares de sua intensidade é a oscilação que Liniker faz entre o funk, o soul e o R&B. O maior representante da soul music no Brasil, Tim Maia, é referenciado nos versos do disco. Prendedor de Varal, que passou de bossa nova a groove, faz homenagem direta ao gênio em seu verso “E como já diziam/Não adianta vir com guaraná/Que eu quero chocolate”. Liniker e os Caramelows sabem ponderar os arranjos da banda e a voz rouca da cantora gerando assim o ritmo que compassa cada batida do coração apaixonado.
Na trilha do álbum, a artista encontra espaço para se remontar através das personas de Lina X e Louise Du Brésil. A primeira é dedicada à Linn da Quebrada, atriz, cantora e amiga de Liniker. Foi Linn quem ajudou Liniker no início do processo de transição, quando as duas moravam juntas em Santo André. Já a segunda imprime toda a feminilidade da artista com um jeito mais descontraído, mas com alto som. Remonta não precisa ser direto para ser um álbum político. Suas entrelinhas e as figuras por trás de sua concepção já deixam claro seu viés.
Ao entrar em um de seus pontos mais altos, descobrimos que a pessoa pra quem Liniker canta ainda é matéria viva, e presente. Por meio de sua poesia, a cantora concretiza cada dor e cada amor abstrato. Ela não tem o menor problema em olhar para a cara do cidadão e falar Você Fez Merda. Remonta é um álbum confessional daquelas experiências que Liniker viveu e decidiu não apenas guardar pra si e também das emoções que nós sentimos e decidimos não contar pra ninguém. Liniker e os Caramelows acalentam o coração, mostram apoio e oferecem o ombro amigo.
Próximo a findar a maré, os Caramelows ganham espaço exclusivo em Funzy. A faixa é o maior registro da presença da banda. A partir daqui, o álbum que já é intimista ao máximo desde seu início, entra em catarse absoluta. Em momento nenhum Remonta se traduziu a um copo meio cheio ou meio vazio, mas sim ao movimento da mudança e a sua própria companhia independente da maré.
Zero, a faixa mais íntima do disco, envolve e comprova que Liniker não tem medo de se revelar inteira por meio de palavras, e contar ao mundo qual o compasso de seu coração. Ralador de Pia carrega uma carga dramática cantada por uma voz calma, provocando uma viagem interna ao ouvinte. Ao mesmo tempo que Liniker coloca os consumidores de sua arte em uma posição de confronto consigo mesmos, ela afaga com seu otimismo. Isso nos livra de qualquer ansiedade que possa surgir durante o processo de imersão durante os quarenta e nove minutos de disco.
Remonta nasceu no mesmo momento em que o país começava dar seus primeiros sinais de retrocesso e conservadorismo. Mas para Liniker, o Brasil sempre foi um lugar hostil de viver. Mulher trans, negra, pobre e periférica, foi com batom forte, brincos grandes e turbante que Liniker conquistou seu espaço com suas letras emotivas. A artista se desnudou, cantou sobre o afeto que é tão negligenciado à mulheres negras e mudou a forma como pessoas trans são vistas no país. Desde o primeiro álbum, passando pelos os trabalhos sequenciais e chegando no registro solo Indigo Borboleta Anil e em Manhãs de Setembro, Liniker foi e continua sendo revolucionária.