Caroline Campos
Qual é a responsabilidade que possuímos com os idosos que nos cercam? Devemos inverter os papéis no futuro? Se eles cuidaram de nós antes, é de se entender que cuidaremos deles depois. A troca na hierarquia familiar, que assusta e magoa todos os envolvidos, é a base de Relic, filme de estreia da australiana Natalie Erika James que, com um carinho bizarro e violento, aborda o desmantelamento da mente humana e a vulnerabilidade que inevitavelmente acarreta.
A experiência foi pessoal – a avó de James teve Alzheimer e, eventualmente, passou a não reconhecer mais a neta. A diretora, então, descreve o longa como o terror do luto por alguém que ainda não se foi, se colocando em tela através de Kay (Emily Mortimer) e sua filha Sam (Bella Heathcote) que são alertadas quando Edna, matriarca da família, desaparece. Três dias se passam até a idosa retornar, como se nada tivesse acontecido, e começar a apresentar comportamentos estranhos.
De início, a personagem de Robyn Nevin remete aos idosos decrépitos de A Visita, filme de 2015 do diretor M. Night Shyamalan. Mas o que se assemelha a uma possessão demoníaca ou entidade sobrenatural não é nada além de alusões pontuais que Natalie Erika James constrói para discutir a demência e a síndrome que havia experienciado com a própria avó. Kay e Sam encontram a casa repleta de bilhetes com tarefas básicas como “tomar pílulas” e “dar descarga” e, quando Edna reaparece, passa a delirar e se torna agressiva.
A sacada que engata Relic é exatamente o fato de James, que escreveu o roteiro ao lado de Christian White, utilizar o terror para contar uma história que poderia ser apenas outro drama familiar ou, no máximo, uma tragicomédia. Enquanto a idosa definha, sua casa, herança mais viva do seu passado, começa a embolorar em resposta. O mofo toma conta das paredes e vitrais na mesma medida que reclama para si as lembranças e a mente de Edna. Enquanto isso, filha e neta se sentem impotentes e constrangidas, buscando saídas que, muitas vezes, passam por cima do direito de escolha da própria mulher.
Algumas das artimanhas clássicas do gênero estão presentes: o monstro debaixo da cama, a tentativa de sair da casa, portas abrindo misteriosamente no escuro. Nada disso é mal utilizado por James, que incorpora efeitos práticos ao criar suas “assombrações” e não cai em conclusões triviais ao encerrar o ciclo de Edna. Ciclo que apenas se reinicia na figura de sua filha – Sam e Kay são distantes assim como Edna e Kay eram. O excelente trio de protagonistas tenta, mas não consegue escapar do looping que, inconscientemente, estão.
Como uma vela, suas personagens queimam lentamente, mas sem nunca perderem a chama. Os labirintos que prendem Edna vão a sufocando e, se antes os lembretes eram simples, agora “meu nome é Edna” e “saia daqui” assombram as paredes infiltradas e podres a deixando perdida dentro de si e dentro de casa. Quando finalmente se solta do peso do delírio, Kay a acolhe como a estranha que já conheceu. Como a carcaça mórbida e mumificada de uma pessoa que não está mais lá, mas um dia esteve – e não merece ser abandonada diante de tanta fragilidade.
A fotografia gelada em parceria com a atmosfera fúnebre exaltam as visões na cabana que relembram a maldição da família com outro corpo contorcido e queimado, mas sozinho. Não houve conforto nem consolo nessa morte. E assim que Kay decide não fugir da responsabilidade afetiva com a mãe e a acolhe, Natalie Erika James recheia seu longa com o afeto que suas personagens merecem. Ao invés de ficarmos assustados – afinal, ainda é um filme de terror -, somos tocados e cutucados.
Relic teve sua estreia mundial no badalado Festival de Sundance em janeiro de 2020 e conta com Jake Gyllenhaal como produtor e os irmãos Russo como produtores executivos. No Gotham Awards, James e seu filme concorreram na categoria de Melhor Filme ao lado de outras quatro obras dirigidas por mulheres. Apesar de não ser agraciado pelas estatuetas, Relic é uma das obras de terror mais bonitas e incisivas do assustador ano de 2020.