Bruno Andrade
Parte considerável dos conflitos geracionais consiste em renegar a vida pregressa do indivíduo que está bem diante de você, comumente associado a alguém antiquado à época. Essa ausência de visão pode transformá-lo em um ser suportável, mas diminuí-lo como ser humano. Pelo menos essa é a lição que tiramos de Pais e Filhos, de Ivan Turguêniev. A essa postura, o diretor e roteirista Jean-Gabriel Périot se opõe ferozmente, e joga luz sobre a história dos trabalhadores franceses em seu documentário Regresso a Reims (Fragmentos), exibido na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
O longa é uma adaptação do livro de memórias Retorno a Reims, escrito pelo filósofo Didier Eribon. Em decorrência das experiências de vida narradas nas páginas, principalmente o testemunho da infância da mãe de Eribon, a obra teve um grande impacto na França quando publicada, em 2009, e tornou-se um best-seller. Ao longo dos escritos, o autor traça um regresso metafísico a Reims, comuna francesa onde cresceu, denunciando a opressão das minorias no país ocasionada pelo uso político da pobreza por aqueles que idealmente deveriam atacar essas estruturas de dominação.
Propiciando reflexões através de imagens pessoais e de época, que vão desde os anos 1950 até os dias atuais, o filme de Périot opta pelo ensaio, adaptando livremente os capítulos originais. Com a narração de trechos do livro a cargo da atriz Adèle Haenel — os ‘Fragmentos’ a que se refere o título —, alternadamente aos testemunhos dos trabalhadores, o documentário transforma o particular em universal, apontando para a vasta multidão de negligenciados como protagonistas da história, com as cenas de arquivos denunciando a longa trajetória de abuso e humilhação sofrida por essas classes mais baixas.
Esse extenso panorama traz evidências de algo previsível: os pais oprimidos transmitem a opressão aos seus filhos, transformando o sofrimento em algo hereditário. O que fica claro é que esse sistema se mantém vivo na contemporaneidade, principalmente quando enxergamos, por exemplo, as visíveis desigualdades no trabalho, além da exploração a qual se submetem os mais pobres, numa tentativa de sobreviver em um mundo que parece ter se esquecido deles — ou que, provavelmente, nunca os considerou. Como diz um trabalhador em um trecho do filme: “ao envelhecer, o corpo do operário exibe a realidade das coisas”.
A deterioração lenta do corpo desses trabalhadores, e a alienação imposta a esses indivíduos, permite enxergar ao passar das cenas que, na realidade, só existem “as classes altas e as classes baixas”, como escreveu George Orwell em 1984. Dar voz aos oprimidos, sem qualquer intervenção, é uma das grandes manobras do diretor. Em alguns momentos, enxergamos a mão de alguém segurando um microfone, mas essa pessoa nunca aparece ou impõe algo aos entrevistados.
A sequência aparentemente cronológica de imagens mostra os motivos ocultos que levaram ex-comunistas a votarem em peso em pessoas como Marine Le Pen, motivados pelo descontentamento com a hierarquia social, numa tentativa desesperada de consolidar a própria identidade. Conforme o enredo de Regresso a Reims (Retour à Reims, no original) aproxima-se dos tempos atuais, conseguimos vislumbrar ecos de A sociedade do espetáculo (1973), filme de Guy Debord baseado em seu livro homônimo de 1967 — uma das grandes influências de Périot.
À medida que o documentário chega ao fim, vemos os oprimidos cada vez mais desiludidos com promessas eleitorais vazias. O filme mostra a visão dos trabalhadores sobre políticos de esquerda e direita, pois, durante os anos 1980, aqueles alinhados à esquerda não enxergaram qualquer tipo de avanço em suas vidas, ficando presos a ideais que não lhes entregavam comida na mesa, enquanto facções de extrema-direita tentavam tirar vantagem dessa situação, enganando deliberadamente a população.
O longa de 80 minutos nos emudece e transporta à melancolia em uma simples troca de imagem, visto que as falas dos trabalhadores acompanham sempre um sorriso perdido, com olhares evasivos e afirmações do tipo “é assim que as coisas são”. O poder do documentário de Jean-Gabriel Périot (como também da obra de Didier Eribon) é o de construir, de forma singela, um mosaico para compreender — mesmo que parcialmente — o motivo de certas coisas acontecerem ainda em 2021, como a adesão praticamente inconsciente de classes mais baixas a grupos de extrema-direita.
Todos querem ter uma vida minimamente decente, e por essa razão são incapazes de enxergar golpes e enganações, tornando-se cegos diante dos fatos. A bem da verdade, esses indivíduos não podem enxergar, pois seus olhos foram deixados em algum chão de fábrica. A principal mensagem deixada em Regresso a Reims é de que a desigualdade social é um dos maiores fracassos da civilização.