Guilherme Veiga
A TV é um território onde não se pode errar, mesmo com as produções desastrosas sempre existindo, inclusive na história recente. Nesse sentido, criou-se um lugar seguro de gêneros em que se pode transitar. Tais segmentos definem uma moda em seu respectivo tempo: os anos 2000 foram férteis para as séries de ‘casos da semana’ com House, Supernatural e CSI nadando de braçada; atualmente, as antologias tem seu lugar ao sol com o sucesso estrondoso de Black Mirror e seus filhos como Love, Death & Robots.
Porém, toda moda, na verdade, é cíclica. As antologias retomam Além da Imaginação e Contos da Cripta, enquanto o que moldou a Televisão no início deste século bebe de Columbo, série dos anos 1970 que catapultou o gênero de investigação como o conhecemos. Respeitando o intervalo de, pelo menos, duas décadas entre tendências, assim como a estética y2k, Poker Face promete ser a precursora de um possível movimento de retorno.
A obra é uma produção original do Peacock, serviço de streaming – não disponível no Brasil – da rede norte-americana NBC, mesmo canal de Columbo, por isso, pode ser categorizada como um filho pródigo da história setentista. Ela discorre sobre Charlie Cale (Natasha Lyonne), uma estadunidense média que, mediunicamente ou não, tem a habilidade de perceber quando uma pessoa está mentindo apenas olhando em seus olhos. Com esse dom, ela acaba descobrindo um crime em um cassino que culmina no suicídio do gerente, fazendo com que ela seja perseguida pelo pai do falecido e dono do empreendimento.
A partir daí, a obra engata em uma road trip bem ao estilo Supernatural, passando pelos cartões postais dos Estados Unidos que menos vendem em lojas de beira de estrada. Cada lugar, um mistério diferente. Mas esse roteiro você já viu aos montes por aí e a série sabe disso, por isso, brinca com elementos do subgênero. O mistério na verdade é bem claro, nos minutos iniciais de cada episódio você já sabe o que aconteceu, com quem e quem fez. A graça vem quando é revelado como Cale curiosamente está inserida em cada contexto e o que ela faz para chegar à solução.
Nesse sentido, Poker Face também incorpora aspectos de antologia, tanto por seus episódios fechados em si como na trama revelada no final que fecha a temporada, mas diferente de The White Lotus, por exemplo, não usa dessa artimanha para se beneficiar. Por mais que tenha um fio narrativo, ele é bem frouxo e só se amarra devido aos vários nós que a personagem principal dá enquanto percorre as estradas norte-americanas. Para se ter ideia, nem mesmo um elenco fixo robusto ela tem. De personagens recorrentes, somente a Charlie Cale de Natasha Lyonne (Boneca Russa) aparece em todos os episódios juntamente com o capanga Cliff, interpretado por Benjamin Bratt (Miss Simpatia), e o agente do FBI Luca, de Simon Helberg (The Big Bang Theory), que aparecem esporadicamente.
A ideia e criação são de Rian Johnson, que começou de maneira tímida em Hollywood, mas logo foi escanteado da indústria após o incompreendido Star Wars: Os Últimos Jedi. O cineasta se encontrou novamente na carreira em 2019 com Entre Facas e Segredos, tão bem recebido que rendeu a continuação Glass Onion e o indício de uma franquia de mistério. Poker Face é a prova de que Johnson achou seu lugar no gênero investigativo.
Nesse sentido, é natural vinculamos a série aos longas anteriores, de forma que ela possa ser concebida como se o brainstorming do diretor na concepção dos filmes ganhasse vida, ou até mesmo os crimes que não chegaram às mãos de Benoit Blanc. Através dela, fica perceptível o manejo e destreza que o idealizador tem para escrever e filmar esses tipos de histórias.
É um pecado que Johnson não tenha tomado as rédeas de forma total da produção, tanto que, mesmo escrevendo todos os episódios, os melhores e mais empolgantes são os que ele dirige: Dead Man’s Hand, The Night Shift e Escape from Shit Mountain. Mas esse ponto é totalmente entendível visto que, ainda que se apresente como uma série procedural, ela pega das antologias a característica de ser uma vitrine para novos diretores.
Sempre transitando em estilos, é difícil categorizá-la e analisá-la de forma contínua. Esse reflexo pode ser notado em suas indicações ao Emmy 2023. Temos ótimos personagens na produção, mas o malabarismo que precisaria ser feito para tentar enquadrá-los em ator ou atriz coadjuvante talvez não valesse o esforço. O problema é o mesmo para ator ou atriz convidado: ainda que contenha atuações como as de Joseph Gordon-Levitt, Stephanie Hsu e vários outros podendo (e merecendo) monopolizar as duas categorias, a divisão de votantes em uma série estreante seria prejudicial para ela mesma.
Nesse cenário, a melhor estratégia da produção é focar suas campanhas nas categorias técnicas de Melhor Coordenação de Dublês em Série de Comédia ou Programa de Variedades e Melhor Design de Produção em Programa de Narrativa Contemporânea (Uma Hora ou Mais). Além de confiar nas indicadas Judith Light (O Menu, Transparent) em Melhor Atriz Convidada em Comédia e Natasha Lyonne por Melhor Atriz em Comédia. Por mais que o páreo seja duro para as duas, Lyonne é quem tem mais chance dado ao seu carisma inigualável, suas presenças recentes nas premiações e por sua atuação carregar a série nas costas na construção de uma Charlie Cale extremamente extrovertida e astuta.
Poker Face é a definição visual de como um gênero se revitaliza e Rian Johnson já se mostrou extremamente competente em usar dos clássicos para trazer uma nova roupagem aos estilos. Os investigadores sedutores do passado aqui dão lugar para uma carismática mulher que, antes, seria uma donzela indefesa mas, agora, assume um papel minuciosamente desenhado para ela. A produção retoma o formato consagrado ao mesmo tempo que pincela conceitos que a sociedade moderna assumiu para ele, como a fanatização de true crimes e o consumo de podcasts pela audiência.
Caso essa vertente televisiva volte com tudo mesmo, ela encontrou em Poker Face o perfeito ponto de partida. Instigante, inventiva, cheia de charme e cativante desde o primeiro minuto, a produção traz para si o discurso de Lavoisier de que “nada se cria, tudo se transforma” e nos lembra que o clássico tem um motivo para ser denominado assim, porém, ele jamais deve ser copiado e sim revisitado. Agora, se essa moda realmente vai pegar, é um mistério que a própria série terá que responder.