Henrique Marinhos e Vitória Vulcano
Favorecido pela liberdade do anonimato, o território dos pensamentos não vive para impor limites no dilema “ser ou não ser”; ele simplesmente é. A introspecção, nessa toada, pode ser a principal contextualização da oficina do diabo, especialmente no fantasioso universo do Terror. Direcionando seu tato experiente no gênero cinematográfico à agente dos assassinatos de X: A Marca da Morte, o diretor e produtor Ti West se une novamente à atriz Mia Goth em Pearl, filme-sequência concentrado em estudar a mente de uma mulher que cansou de existir plenamente apenas no mundo das ideias.
A prequela dimensiona a juventude da idosa tida inicialmente como a pervertida responsável pela morte de uma equipe de cineastas pornográficos. De volta a 1918, na mesma fazenda do Texas, Pearl ainda não carrega rugas, mas já conserva suas primeiras frustrações. Filha de imigrantes alemães – uma mãe tão autoritária quanto cética (Tandi Wright) e um pai inválido que vegeta com o auxílio de seus cuidados paliativos (Matthew Sunderland) -, a garota só encontra consolo na rotina campestre ao performar danças para os animais do local. No misto de rejeição, silêncio e devaneio, ela também questiona a sobrevivência do marido Howard (Alistair Sewell), soldado incomunicável no recente término da Primeira Guerra Mundial.
Resistindo em um período igualmente marcado por uma epidemia de gripe espanhola, a jovem se move pela propulsão do sonho de se tornar uma estrela de Cinema. Sob a pele de um Horror slasher, o longa, então, constrói a imaginação da protagonista no ritmo em que sinaliza seus vestígios de maldade, anteriores a qualquer banho de sangue e muito mais primitivos do que rancorosos. Pearl ensaia mentiras, tenta manipular situações e até mata gansos se for preciso: qualquer traço de insanidade a desliga da monotonia e a faz ser diferente do comum. Caminhando nessa espiral comportamental constante, a história vai do incômodo ao fascínio, valorizando a brutalidade dos sentimentos.
Às avessas de seu precursor, Pearl tem um núcleo reduzido de personagens, que despontam em cena atrelados a cada camada emocional extrapolada pela personagem principal. Entre os encontros com o projetista (David Corenswet) – que desperta sua esperança e sexualidade –, e os desabafos pingados na relação inevitável com a cunhada (Emma Jenkins-Purro), a jovem escancara, no olhar e nos gritos, aprisionamentos que sufocam a base da psique humana desde o início dos tempos. Por questionamentos silenciosos, sabemos que mais do que ser vista ou desejada, ela implora por sentir qualquer migalha de amor.
Se a investigação de uma alma insatisfeita é o que move as engrenagens sanguinárias do longa, engolir o processo sem o primor de Mia Goth seria princípio de indigestão. A britânico-brasileira mastiga toda tragédia e qualquer desequilíbrio com força genuína, sendo capaz de aproximar a racionalidade da ironia em um rito digno do expansivo cinema de Terror. Com grande liberdade criativa, além de barbarizar em um monólogo de oito minutos em plano-sequência, a intérprete também foi figurinha carimbada na roteirização e produção da prequela.
Quase desprovido de jumpscares, Pearl ganha destaque ao se modelar usando compassos mega dramáticos, em uma ousadia familiar a outras criações com selo dos estúdios A24. A trilha sonora de Tyler Bates e Tim Williams coreografa as escapadas da protagonista à cidade mais próxima, como se rebobinasse a fita de O Mágico de Oz (1939), clássico musical que permeia a produção dos figurinos ao resgate da saudosa técnica technicolor.
A fotografia solar, a distância do convívio social e principalmente o sarcasmo em tantas críticas atuais integram essa realidade tão distorcida e espetacular. Através da visão otimista de Pearl, as imagens saturadas de cor contrastam com a desesperança apresentada em um clímax que nos impede de desviar as atenções. A cinematografia criada por Eliot Rockett, aos poucos, só alimenta o ciclo vicioso de uma vida que se esbalda nos assassinatos, para contornar a perda da inocência e brindar o encontro nada simplista com a epifania histérica.
Os ferozes 102 minutos do slasher também colocam a violência gráfica pura e crua em segundo plano. Assim, pela desenvoltura e complexidade, o imaginário popular do que o Terror representa se confunde na loucura aberta ao público. Ganhando fama como a versão feminina do Coringa, Pearl sobrepõe as consequências de suas maquinações em uma dinâmica similar ao vilão de Gotham City: abraçando a enxurrada de desgostos que transformam o caráter de sua protagonista.
Aqui, o retrato das mulheres na Era de Ouro do Cinema foi uma das muitas inspirações de estilo, algo que West sempre busca incluir em suas produções. Em entrevistas, o diretor revelou que, na prequela, seu comprometimento com a estética e suas pesquisas filmográficas relacionadas não eram para cenas específicas, mas para deixarem seus empreendimentos “exaustivamente esotéricos” – como na aplicação de tons avermelhados emprestados de Os Sapatinhos Vermelhos (1948).
Descrito pelo cineasta Martin Scorsese como “profundamente perturbador, hipnotizante e selvagem”, Pearl foi lançado em um circuito credibilizado da sétima arte e acumulou uma onda avantajada de aclamações. Entretanto, a resistência da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas em reconhecer filmes de Terror, vide Não! Não Olhe!, de Jordan Peele, e o próprio filme de West, continua reforçando que Corra! e O Sexto Sentido são, na verdade, exceções à regra. Goth, inclusive, chegou a reagir às não-indicações da 95ª edição do Oscar: “[A premiação] não é totalmente baseada na qualidade do projeto em si, […] acho que muitas pessoas pensam assim […] e teria um bom efeito [indicar obras de Terror]”.
Colecionando contragostos dentro e fora de cena, o longa, sobretudo, persiste na memória de todo fã do gênero sanguinolento e sucateado por sua meticulosidade. Mesmo não sendo fundamental para compreensão da primeira sessão de matanças, Pearl dá à atmosfera de X uma espécie de anti-heroína, que, antes de estar fadada ao fracasso, foi precursora de revoltas e anseios naturais aos vilões, sonhadores e seres humanos. Implacável, ela rompe as barreiras do imaginário e se materializa para além das tormentas que a consumiram.
MaXXXine, que seguirá os passos da destemida final girl em Hollywood, recebe a função de completar a trilogia elevando ainda mais o nível escalado nas tramas passadas. Entretanto, com o retorno do protagonismo de Mia Goth, as expectativas criadas não poderiam diferir do estratosférico. Certamente, Pearl estaria orgulhosa de tanto talento reunido em uma única juventude. Isso porque, vivendo as piores facetas do medo, a neta de Maria Gladys sangrou até às ruínas de seu próprio estrelato.