Vitor Evangelista
On the Rocks é uma expressão em inglês indicando que uma bebida, normalmente alcoólica, deverá ser servida com gelo. É também o nome do sétimo filme de Sofia Coppola, diretora experiente em contar histórias calmas na superfície, mas recheadas de drama e ventanias por debaixo dos sorrisos amarelos e jardins ensolarados. Na incongruente filmografia da norte-americana, o filme de 2020 é um anexo a temáticas passadas, mas abre o leque para a sutilidade do inevitável e a magia do ordinário.
Já se passaram quase 18 anos desde que Bill Murray se despediu de Scarlett Johansson numa Tóquio inóspita aos sentimentos humanos, confidenciando-a palavras que até hoje não foram impressas nos jornais. Foi em 2004 que Coppola subiu ao palco da 76ª edição do Oscar para receber a estatueta de Melhor Roteiro Original por Encontros e Desencontros. A cineasta, até então, era a terceira mulher na história indicada à Melhor Direção (em 2021, contamos 5, mas o futuro de Chloé Zhao parece promissor), além de ter ouvido seu nome citado na categoria principal, onde também estava no páreo.
Lost in Translation, o título original do filme que deu esse palco à Sofia, já demonstrava com assertividade sua mão cuidadosa na hora de trabalhar a solidão como adereço sentimental da vida adulta. Àquela altura, a diretora escolheu deslocar seus típicos protagonistas nova-iorquinos para o Japão, rasgando na carne a tristeza e o afastamento em várias camadas, a distância humana, a física e a de linguagem. Atmosférico e cheio de respirações presas, o longa firmou uma imagem proeminente da mulher na indústria cinematográfica.
Com um sobrenome que pesa mais que qualquer nome próprio no mundo, Sofia também tinha no currículo e no carma uma característica atuação na terceira parte de O Poderoso Chefão, trabalho mestre de seu pai. O peso para remexer o esqueleto e oxigenar a imagem de atriz retroativa e filha do papai era imenso, e por isso sua estreia atrás das câmeras não poderia ser mais arriscada que a adaptação de As Virgens Suicidas. O filme de 1999 fez sucesso em Sundance e foi um estrondo no mercado, agradando os céticos que a premiaram com dois Framboesas de Ouro pelo filme dos Corleone.
Dei essa volta toda antes de falar de On the Rocks por algumas razões. A primeira, e mais óbvia, foi para ampliar os horizontes de quem só conhece Coppola por ser filha de Francis Ford ou por ter dirigido o Especial de Natal de Bill Murray. O segundo motivo é para sublinhar o caráter cíclico (mas nunca repetitivo ou entediante) de seu cinema.
Eu poderia ir mais fundo é claro, e detalhar seu sucesso no Globo de Ouro com Encontros e Desencontros, poderia citar a narrativa de Um Lugar Qualquer,- longa de 2010 que descasca o relacionamento entre pai e filha -, ou poderia até mesmo exaltar suas conquistas na Europa: um César de Filme Estrangeiro, Melhor Direção em Cannes (por O Estranho que Nós Amamos) e o Leão de Ouro em Veneza, mas vou parar por aqui.
É fato que a febre Coppola em premiações norte-americanas começou e terminou com Encontros e Desencontros, mas isso deve-se muito ao fator da nova-iorquina não se ater a reinvenções baratas ou buscar transformações chocantes na hora de filmar suas obras. Ela exprime caprichos, é claro, como a aparente futilidade de seus protagonistas. O grupo de jovens brancos roubando a torto e à direito em Bling Ring ainda traz um gosto amargo na boca, mas suceder a banal narrativa da Gangue de Hollywood com o remake de O Estranho que Nós Amamos deu a cartada de respiro para Sofia, lhe rendendo a já citada Direção em Cannes, se tornando apenas a segunda mulher a portar tal honraria.
E, nesse ponto, notamos que o nome de Sofia Coppola ocasionalmente vem acompanhado de conquistas recentes ou inéditas para as mulheres diretoras, roteiristas e produtoras. Até hoje, só precisamos usar uma mão para contar o número de diretoras indicadas ao Oscar, e um dedo para mostrar o número de vencedoras na categoria. Coppola chegou onde chegou, em adição ao seu talento como contadora de histórias e de arte, por seu privilégio de nascença e sua rede de contatos. Não deve existir hipocrisia de diminuir as conquistas por ser filha de fulano ou ex-esposa de beltrano.
Se Chloe Zhao e Regina King estão no páreo para serem indicadas em 2021, é porque mulheres no passado conseguiram firmar o pé na areia e demarcar seu espaço de direito. Sofia Coppola ainda é branca e privilegiada numa porção de âmbitos, mas falta de talento ou merecimento não são sinônimos de nada que ela representa e carrega na carreira. On the Rocks não deve colocá-la em posição de prêmios esse ano, mas o filme se vende nas inovações e no olhar complacente da cineasta para as mulheres que decide amar com a câmera.
Partindo de Kirsten Dunst novinha em As Virgens Suicidas e depois com fogo nos olhos em Maria Antonieta, para a cabisbaixa Scarlett Johansson de Encontros e Desencontros e a arisca Emma Watson de Bling Ring, Sofia Coppola já demonstrou repetidas vezes sua paixão por filmar atrizes em sintonia com a energia de seus filmes. Ela sempre encontra na escalação do elenco e na própria direção que dá a ele uma maneira ímpar de equiparar a mística da performance com a do longa-metragem em questão. Com On the Rocks não foi diferente.
Rashida Jones é a melhor protagonista de Coppola em anos. Comumente atrelada ao ramo da TV, tudo pelos hilários papéis em The Office e Parks and Recreation, a escalação da atriz (que também tem um pai muito famoso) para esse tipo de filme foi estranha, mas o desafio paga bem. A coprodução A24 e Apple TV+ esbanja o orçamento ideal para a diretora filmar sua NY noturna e outrora sexy que ela faz parecer seu próprio lar. E, se no filme de 2003, Tóquio era a personificação física da solidão, em On the Rocks, a tristeza está dentro dos personagens, em seus apartamentos abarrotados e nas caminhadas apressadas pelas ruas da cidade.
Mas se engana quem pensa que o filme cai no melodrama padrão da temporada de premiações (História de um Casamento, estou olhando para você). Desconfortável como rir num funeral, On the Rocks se centra na fissão do casamento de Laura, personagem de Rashida, com o marido Dean, papel de Marlon Wayans, outro ator acostumado ao gênero da comédia. No meio da crise matrimonial, surge o pai de Laura, Felix, interpretado com o ar sacana que só Bill Murray sabe trazer ao cinema de Coppola.
Passados os noventa e poucos minutos de duração, o filme se exibe em algumas frontes que merecem destaque. Sendo categoricamente uma narrativa sobre uma mulher, seus conflitos individuais e perspectivas pessoais, On the Rocks mantém Rashida Jones cercada por uma porção de homens, nunca entregando alguma confidente ou amiga. A única outra mulher na órbita do filme é (a inconveniente) Vanessa, vivida pela enérgica Jenny Slate, outra das filhas de Parks and Rec.
E Laura, achando que o marido está tendo um caso no trabalho, em momento algum busca ajuda da mulher, partindo de primeira para o auxílio do pai, um homem divorciado e idoso que encontra todas as brechas para apresentar comportamentos machistas. Coppola firma sua sutil crítica ao tipo de toxicidade que Felix emana, mas o filme nunca culpabiliza ou coloca ele num lugar de pensamento e crescimento, pelo fato da diretora e roteirista optar por não inserir um drama carregado e editado em On the Rocks.
Viradas e soluções normalmente alinhadas à músicas de tensão, gritaria e chororo recebem um tratamento relaxado em suas mãos; a calmaria dita o tom do todo, jogando ele nesse perigoso flerte de ser ‘um filme sobre nada’. Nossa visão de Dean muda junto da ótica de Laura, julgamos ele, xingamos ele, culpamos ele, mas tudo enquanto ela nos guia. Por conta disso, sequências mais sérias ou decisivas parecem planas no sistema que Sofia Coppola escolhe construir e desmoronar seus personagens. On the Rocks pode não ser sobre transições, mas, de fato, usa das mudanças e dos contrastes para transmitir suas mensagens conclusivas.
Laura se veste majoritariamente de cinza, não usa maquiagem e raramente aparece em ambientes iluminados. Ela está presa na própria cabeça, no bloqueio criativo que a impede de escrever seu livro e também é refém das inseguranças da vida de casada e de mãe. O singelo adesivo desbotado de Bernie Sanders remonta o caráter resiliente da personagem, que só se liberta mesmo quando abraça o caráter disruptivo do ambiente que a cerca e por qual caminha.
Construindo a ponte com o título e a expressão do gelo nas bebidas, o filme On the Rocks é escorregadio e temporário. Soul, o presente de Natal da Pixar, sublinhou que não existe propósito único na nossa existência, e o sétimo longa de Sofia Coppola vai mais além: nessa jornada de pai e filha em busca do tempo e do amor perdidos, é imperativo ressignificar para seguir em frente