Raquel Dutra
Em novembro de 2013, a população civil da Ucrânia entrou em conflito direto com o governo de Víktor Yanukóvytch. Numa onda de protestos liderados por jornalistas e estudantes que se estendeu até fevereiro de 2014, o povo denunciava a corrupção, o abuso de poder e a violação dos direitos humanos cometidos pelo governo. O estopim, de maneira geral, foi a frustração de um pedido popular por maior integração com União Europeia, que aconteceu quando o bloco se recusou a firmar acordos com o país aliado da Rússia enquanto ele não resolvesse a sua “deterioração flagrante da democracia e do Estado de Direito”. No meio do movimento que ficou conhecido como Euromaidan – ou, mais significativamente, Revolução da Dignidade – está o drama de amadurecimento de Olga e a sua participação na Competição Novos Diretores da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Ao misturar realidade e ficção, o primeiro filme do jovem diretor francês Elie Grappe trabalha para trazer força a uma história real a partir de elementos ficcionais. O centro dessa construção narrativa é Olga (a ginasta ucraniana Anastasia Budiashkina), uma campeã olímpica em treinamento e cidadã de um lugar que busca uma revolução. Aos 15 anos, ela é um prodígio ostentado por um país cujo governo é o objeto de oposição do ofício de sua mãe (Tanya Mikhina), jornalista que reporta as corrupções de Yanukóvytch e milita pela sua deposição. As duas estão na mira da perseguição violenta do governo – numa demonstração fortíssima da capacidade de direção de Grappe que impacta os primeiros minutos do filme -, então, Olga vai para a Suíça, país de seu falecido pai, para continuar desenvolvendo suas ambições esportivas na ginástica a salvo.
Enquanto Olga inicia seus treinamentos para a seleção nacional na Suíça, sua casa se incendeia na Ucrânia. Entre as suas aspirações individuais e os conflitos de sua pátria, o crescimento da protagonista exilada é intenso, doído e urgente, impulsionado pelo roteiro de Ellie Grape e de Raphaëlle Desplechin, que são típicos treinadores rígidos. E é fato que Anastasia Budiashkina conhece bem a frieza exigida de atletas de alto rendimento, mas, em sua primeira atuação, ela surpreende é na maneira como compreende os sentimentos à flor da pele da personagem, que tem um mundo em revolução dentro de si, mas não pode tomar parte nesse revolucionar.
Desta forma, até o primeiro ato, Olga é um filme chapado, assim como o solo sobrevoado por suas personagens que perseguem a perfeição. Mas, à medida que os calos apertam, a história cresce e se ajusta ao seu espaço. Parte dessa sensação nasce das lentes de Lucie Baudinaud, que sabe encontrar sentido nos corpos, movimentos, olhares, rituais, técnicas, aparelhos, instrumentos, expressões e (falta de) palavras daqueles centros de treinamento. Quando as mãos da edição de Suzana Pedro assumem a narrativa, todos os movimentos de Olga convergem numa transmutação imagética, e no desenho de som de Jürg Lempen, Sergiy Stepansky e Tristan Pontécaille, nada é mais poderoso do que o que acontece no silêncio.
O maior triunfo de Olga é reconhecer a dimensão da nossa existência no mundo. Como o próprio diretor comentou em entrevista ao portal Cineuropa quando questionado sobre a escolha do esporte para ilustrar a história, o desempenho individual da protagonista se mostra fundamental para a conquista da equipe, e desta forma, ela não consegue se desvincular da sensação de que sua ação também é importante para a luta coletiva da sua nação. Assim, a ideia de neutralidade é entendida como algo insuportável, e, mais do que isso, impossível. E como cantava o clamor popular e democrático de Euromaidan, Olga compreende que existem lutas pelas quais nós damos o nosso corpo e a nossa alma.