Vitor Tenca
O sistema de castas sócio-religiosas perdura em território indiano há mais de 2600 anos. A estranha e embaraçada divisão populacional configura uma sociedade baseada em preconceito e desigualdade, que acaba por perpetuar um privilégio às castas superiores em detrimento da injustiça e regressão às inferiores, independente do fato desses costumes terem sido erradicados por lei desde 1950. O Tigre Branco, produção original da Netflix dirigida por Ramin Bahrani, nos mostra essa realidade de uma Índia que vive na luz e nas trevas ao mesmo tempo.
Logo de cara, o filme aborda um fator recorrente nas camadas mais pobres da sociedade indiana: a descontinuação dos estudos devido ao trabalho precoce. O então prodígio Balram (Adarsh Gourav), que passa a trabalhar como faz-tudo na casa de chá da família, vê uma solução para seu problema: virar o motorista de uma das famílias mais ricas de toda a Índia. Sendo assim, somos devidamente apresentados aos costumes antiquados do sistema de castas ali presente.
Trabalhar e endeusar aqueles que são responsáveis por extorquir sua família, que já vive em situação de miséria, serve para refletir um valor intrínseco da maneira como os servos e mestres se relacionam. O filme traduz isso de maneira simples, porém certeira: os súditos não passam de galinhas presas em seu galinheiro, reconhecendo seu destino cruel, sem cogitar a hipótese de rebelarem-se. Ou seja, um fruto histórico de uma submissão e lealdade desnecessária.
É dentro da família Shah que conhecemos Pinky (Priyanka Chopra Jonas) e Ashok (Rajkummar Rao), o casal que sentiu um pouco do gosto da liberdade americana. Você provavelmente já ouviu falar dos white saviors, mas o longa nos introduz a um novo segmento dessa classe, os american saviours. O que seria de um filme que trata dos costumes de um país asiático sem a inserção dos valores ocidentais, não é mesmo? Essa visão é nítida nos diálogos do casal, que considera o serviçal um mero atraso da sociedade, e que eles serão os responsáveis por colocar fim a desigualdade na Índia.
Mas, obviamente esse pensamento só prevalece até certo ponto. Quando a dupla atropela uma criança em meio a uma madrugada regada à álcool, vemos uma quebra da narrativa de O Tigre Branco. Ao mesmo tempo em que Balram se torna ainda mais submisso – a ponto de assumir a culpa do ocorrido (com direito a contrato) -, vemos seus empregadores o tratarem de forma cada vez pior, culminando no fim do relacionamento entre Pinky e Ashok.
Diante da temporada de premiações, a Netflix não perdeu tempo em produzir filmes estratégicos que pudessem concorrer nas mais diversas categorias. A obra baseado no best-seller do New York Times, de Aravind Adiga, foi indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, e, por mais que não possamos necessariamente classificá-lo como um produto de Bollywood, The White Tiger – título original em inglês – tenta reproduzir o feito de Bong Joon-Ho e Parasita do ano anterior.
Infelizmente, o otimismo em relação à vitória do filme de Ramin Bahrani recebe panos quentes. O roteiro de Bahrani ficou longe de ser o favorito, já que a categoria está nas mãos de Chloé Zhao com Nomadland ou Florian Zeller com Meu Pai. Mesmo assim, apenas a participação do filme já foi uma surpresa interessante, principalmente indicando a narrativa fluida e agitada do cineasta. No fim, o importante movimento de transição que dá cada vez mais espaço para a população sub representada agradece
O longa pode ser classificado de forma episódica, visto que são perceptíveis os atos que dividem a trajetória do personagem principal. A primeira virada de chave ocorre logo em seguida da mudança citada acima. Odiamos nossos mestres atrás de uma fachada de amor, ou os amamos sob uma fachada de ódio? Esse é o questionamento que Balram faz para finalmente começar a passar a perna em quem o tratou como lixo por mais de 120 minutos de tela. Vem daí o novo objetivo principal: a bolsa vermelha.
A verdade é que os mocinhos ricos não são tão bonzinhos assim, e a maleta cheia de propina de Ashok prova tudo isso – se o público brasileiro não havia se identificado com a desigualdade, com certeza a corrupção deu conta do recado. Assim, vemos o terceiro ato se desdobrando, juntamente da aparição fantasmagórica do pai de Balram. As trapaças, roubos e aproveitamentos em cima do patrão já não bastam mais, é preciso trocar de posição, não há mais espaço para o antigo Ashok.
A etapa final retoma o início de O Tigre Branco, logo que voltamos a ver Balram com seu terno elegante e cartazes de procurado. Em meio a tudo isso, uma dúvida se levanta no ar: o rosto estampado nos folhetos é resultado da morte arranjada ou do assassinato real? Nada disso importa, já que a criatura que nasce uma vez a cada geração – o tigre branco – está novamente entre nós, e, assim como o grande Iqbal nos conta, quando você reconhece o que é belo neste mundo, você deixa de ser escravo.